Desenha-se um quadro terrível, com juros nas alturas, os bancos trancados devido à desconfiança com o risco de crédito, IPCA desinflando e nenhuma pressão de demanda
A seita dos juros
Lula saiu candidato em 2022 com três certezas: derrotaria Bolsonaro, a extrema-direita organizada no entorno do ex-presidente continuaria atuante e, depois de empossado, teria um duelo de vida ou morte para a sorte de seu governo com o “fundamentalismo de mercado”, como assim o chama a direita do Partido Republicano avessa a Donald Trump.
As três certezas se confirmaram, apesar de eventos não esperados. A conta das medidas para erguer a popularidade de Bolsonaro à custa de rombos orçamentários, incluindo a demolição do teto de gasto público, ignorada na gestão passada pelos cães de guarda da responsabilidade fiscal que voltaram a ladrar ameaçadoramente, foi muito mais salgada do que até os cínicos poderiam cogitar, e cabe a Lula resgatá-la.
Aprovadas com a cumplicidade das lideranças do centrão da política que dão as cartas na Câmara e no Senado, é o que explica a relativa tranquilidade com que Lula viu passar a emenda constitucional, nem empossado estava, que liberou R$ 145 bilhões para gastar com o Bolsa Família de R$ 600 por cabeça em 2023 e mais R$ 23 bilhões para obras.
O centrão é ecumênico, desde que possa embaralhar as cartas do jogo político, e deu a Lula o que dera a Bolsonaro: dinheiro orçamentário fora do teto destelhado. O mercado financeiro apenas rosnou.
A tentativa de golpe a partir do vandalismo contra as sedes dos três poderes, em 8 de janeiro, também não estava previsto, mas serviu mais para expor os CPFs da infiltração extremista no governo, nos quarteis e no empresariado que para fragilizar o início do novo governo.
E Lula partiu para remover o obstáculo realmente sério que o levou a se eleger: a oposição, ou descrença, do mercado financeiro a qualquer programa de desenvolvimento concebido no governo, qualquer governo, movido a investimentos em obras e no renascimento industrial. É fato que este programa nunca foi explicitado, mas é também verdade que ele nunca ocultou a sua intenção. É esse o embate que importa ao país.
A impressão na mídia, insuflada pelos farialimers fundamentalistas, sugere que o entrevero com Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, vai arruinar a economia e o capital político de Lula. Disse-se o mesmo do 8 de janeiro, mas quem achou melhor se escafeder para os EUA foi o ex-presidente golpista. Como se diz, apressado come cru.
Quem é mesmo vítima?
Lula esperava encontrar maior resistência entre os grandes bancos, e no entanto encontrou na Febraban ambiente amistoso para negociação. A pedra no caminho estava onde não esperava: no presidente do BC. Ele se agarrou ao seu mandato, conforme lei de fevereiro de 2021 que deu autonomia ao BC, mostrando-se vítima de assédio para baixar a Selic.
A empáfia de Campos Neto, recrutado pelo ministro Paulo Guedes na tesouraria do Banco Santander, surpreendeu o presidente. Não era o que ouvia dos relatos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. E havia ainda outra faceta de Campos Netto subestimada pelo PT.
O executivo discreto tomou gosto pela política ao chegar à capital, em 2019. Ligou-se aos mandachuvas do centrão e a Bolsonaro, não se afastando depois de se tornar funcionário de Estado, com a lei da autonomia, e não do governo.
Ele votou no primeiro e segundo turno, em 2022, trajando a camiseta amarela da Seleção, uniforme do bolsonarismo, apesar de o estatuto do BC vedar manifestações partidárias aos funcionários. Coisas estranhas sobre seu partidarismo tem aparecido. O boletim da FIPE, da Faculdade de Economia da USP, publicou em abril de 2021 artigo com tal alerta.
“O país carece de uma política econômica de boa qualidade e marcada, principalmente, por níveis razoáveis de transparência”, concluiu o autor, o economista Gabriel Brasil. “O projeto de autonomia do BACEN veio nesta direção. O mesmo não parece valer para as atividades políticas frequentes e controversas do seu presidente.”
Enigma para Campos Neto
Mandato em órgãos de Estado é exatamente para afastar seus diretores de influências políticas. Se o presidente da Anvisa, almirante Barras Torres, tivesse cedido às pressões de Bolsonaro no auge da pandemia, sabe-se Deus quando as vacinas teriam chegado ao Brasil. A autonomia, contudo, não se confunde com independência. Há contas a prestar.
É o que Lula está a cobrar do BC. Por que o combate à inflação, seja em seus surtos de alta ou em tempos de calmaria dos preços, sempre se faz com taxa real de juro muito acima do IPCA, enquanto países ricos, emergentes e pobres que também adotam a regime de metas têm sucesso com taxas significativamente mais baixas? No mundo, juro real, isto é, acima da inflação, é raridade. Mesmo nos EUA, onde as taxas do Fed estão em seu maior nível desde 1980, mas ainda abaixo da inflação.
Essa é, basicamente, a essência da questão levantada por Lula sobre o nível do juro de política monetária definido pelo Copom, a Selic, e mal direcionada por ele ao criticar a autonomia formal do BC. Não é a autonomia a questão. Em seus dois governos, embora sem o formalismo de lei, o BC operou com ampla autonomia, apesar de alguns climões.
Com ou sem autonomia, a enorme discrepância entre os juros definidos pelo BC para domar a inflação, encarecendo todos os tipos de crédito no país, e a média das taxas operadas com igual motivo pelos bancos centrais no resto do mundo é o enigma para Campos Neto decifrar.
BC não é infalível
Juros altos atuais decorrem de fatores objetivos, derivados da forma de atuação do nosso BC, que tem sido mais camarada com os traders dos papéis do Tesouro que seus similares no mundo. Nos EUA, o Fed elevou de 0,25% a 4,75% sua taxa de curto prazo e já se fala em pausá-la no entorno de 5%, com a inflação em 6,50% e desinflando.
Aqui, a Selic se alinhou à inflação entre julho de 2019 e maio de 2021, quando chegou a 2% ao ano, dando o gás de atividade econômica que Bolsonaro ansiava para sua reeleição, enquanto o IPCA começava a escalar, indo de 5,2% ao pico de 11,7% em maio do ano passado. Daí em diante passou a desinflar, graças ao choque inverso aplicado pelo BC com a Selic subindo de insustentáveis 2% para 13,75% em agosto.
Se o BC errou ao mirrar a Selic como nunca visto, por que não erra agora?
BCs não são infalíveis, ao contrário do que sugerem os analistas de sofá que comentam de um tudo. Mas soou despropositado o BC chegar em janeiro e indicar a extensão dos 13,75% até 2024, com os farialimers espalhando que a Selic teria de subir ainda mais. Contra que ameaça, se a inflação de janeiro cedeu de 0,62% em dezembro a 0,53%, abaixo da projeção (0,57%)? Com o índice de alimentos, apesar de ainda alto, de 0,59%, contra 1,1% no início de 2022 e 1,02% em 2021?
Vem cá: Lula é que ainda não desceu do palanque, conforme seus críticos, ou o BC?
Fato é que se desenha um quadro terrível, com juros nas alturas, os bancos trancados devido à desconfiança com o risco de crédito, IPCA desinflando e nenhuma pressão de demanda, ao contrário (o comércio terminou 2022 atrás de seu nível pré-pandemia). Que Lula não caia na armadilha de mandar o CMN rever a meta de inflação – 3,25% este ano e 3% em 2024. Não é ela o problema, são as razões de a Selic estar em 13,75% e o BC relutar em rever a overdose dos juros.
*Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.