Agenda fiscal sem consenso empresarial e maioria parlamentar não é um caminho promissor

Prioridade é crescer

Dez meses de discussão sobre a condição do orçamento federal, depois de oito anos tumultuados, do segundo mandato de Dilma às estripulias de um governo com índole golpista e fundamentalista ma non troppo na economia, convenhamos, é tempo demais, e desagradavelmente chato para um presidente com vocação social progressista e sem maioria parlamentar.

Dá-se prioridade a um programa de ajuste fiscal quando a insolvência da dívida externa, como se encontra outra vez a Argentina, ou interna bate à porta. Nos afastamos desta chaga, para resumir, com a reforma monetária de 1994, as reservas acumuladas depois de 2003 e os altos superávits da balança comercial graças à exportação de grãos, carnes, minérios e petróleo. As contas correntes do país estão saudáveis.

Também não são os déficits orçamentários sequelas da arrecadação de poucos impostos, longe disso. Uma reforma tributária decente deveria ter por princípio reduzir a imposição contributiva, hoje de 34% do PIB. O problema é o gasto, e não bem por ser elevado e, sim, por ser de baixa qualidade devido às disfuncionalidades da gestão do Estado, das relações federativas e de uma governança crescentemente ineficaz.

A parte fiscal, portanto, é o nó a desembaraçar. O país tem déficit recorrente na lei orçamentária tanto da parcela que exclui os ônus da dívida pública, chamada de déficit primário, cerca de 1% do PIB este ano, quanto da que os inclui, o déficit nominal, previsto em 7,4% do PIB para 2023. O governo optou por enfrentar este gargalo elevando os tributos de empresas e bancos mudando as regras de incidência.

O fez, ao conseguir do Congresso autorização para reaver a regra com base na qual empates no conselho que examina pendências tributárias, o Carf, favorecem a União, não o contribuinte, conforme esta prática universal. E o faz com medidas tramitando no Congresso que oneram os fundos de investidores de maior renda aqui e fora (as offshores) e barram a extensão dos incentivos do ICMS aos impostos federais, entre outras ações com igual propósito.

Esta via de enfrentamento das mazelas fiscais pelo aumento de carga tributária, desconsiderando o reexame dos subsídios e dos gastos do setor público, tem várias implicações. A principal compõe a crônica política cotidiana: a dependência do governo dos partidos do chamado centrão. Menos aparente é o crescente mal-estar no setor privado.

Contradições de origem

O pano de fundo desta macroeconomia embute contradições de origem. Ela pressupõe que os juros altos da política monetária operada pelo Banco Central brotam da semeadura dos gastos públicos a descoberto, implicando emissão de títulos de dívida pelo Tesouro Nacional. Mais: alimentam a demanda por meio de transferências de renda fiscal, que jogam lenha na inflação, afastando-a da meta perseguida pelo BC, 3%.

Quanto mais dívida, maior a pressão de traders do mercado financeiro por maiores rendimentos e menor disposição para desentocar os fluxos de capitais estacionados na tesouraria de bancos e empresas com caixa líquido aplicados em papéis sem risco do Tesouro, indexados à Selic.

A lógica fiscalista do aumento da receita sobre a renda de grandes empresas e pessoas mais ricas tem este fundo, que também explicaria o crescimento econômico pífio das últimas décadas. E por que não agir também sobre a despesa? Porque isso é o que o governo Bolsonaro fez, mas de modo provisório, congelando a folha do funcionalismo público e estrangulando o custeio de serviços à população.

A contradição é que a despesa voltou a crescer, conforme prometido na campanha eleitoral, além de iniciativas para tirar obras públicas paradas pelo país, e são milhares, com programas como o novo PAC. O grosso dos capitais necessários será privado, mas há a expectativa de que o orçamento libere algumas dezenas de bilhões para o investimento público agir como ignição da roda do desenvolvimento.

Ouviram o empresariado?

A contradição é que o BC, com os juros ainda excepcionalmente altos, embora agora a 12,75%, depois de ficar em 13,75% por mais tempo que o razoável, busca o “terreno contracionista”, como repete nas atas do Copom. Qualquer movimento para a economia andar a um ritmo maior que o pretendido pela taxa Selic real, atualmente de 8,93% considerando o IPCA dos próximos 12 meses, segundo o boletim Focus do BC, tende, por tal juízo, estender a pauleira dos custos financeiros, não a aliviar.

Outra contradição é que o investimento privado de longo prazo visado corretamente pelo governo virá majoritariamente de grandes empresas e bancos, cujo caixa cobre seus gastos correntes e gera resultados para aplicar. Parte deste resultado será desfeita pelas regras tributárias que a Receita orienta o governo a pedir ao Congresso para restringir ou abolir. Receita financeira, muitos esquecem, se acresce à receita operacional dos negócios, e em tempos mornos tende a excedê-la.

Mudanças de política econômica provocam estes descompassos, e isso é do jogo. Só que precisa de muita negociação, como Joe Biden em meio à extrema polarização política dos EUA conseguiu dos republicanos, que lhe movem uma oposição feroz, para aprovar seus programas industriais e de infraestrutura. O chamado ‘bem-bolado” com o empresariado, mesmo com os que combateram Bolsonaro, não aconteceu, ao menos ainda.

Nem se atentou também que a maioria de centro, à direita e esquerda, no Congresso, em especial na Câmara do presidente Arthur Lira (PP-AL), tem mais afinidade com o empresariado do qual o governo precisa minimamente para tocar seus projetos que com seduções fisiológicas.

Aggiornamento necessário

A boa nova é que a economia está desempenhando melhor do que se supunha no início do ano, a inflação dá sinais de distensão, ainda que em ritmo mais lento do que o arrocho monetário deveria entregar, as exportações de commodities chamam a atenção pela resiliência dado os percalços econômicos e geopolíticos da China, nosso maior cliente.

O que vai mal é a articulação entre os poderes, agora entre o STF e o Congresso e, de modo duradouro, entre o parlamento e o governo. Do lado institucional, falta a compreensão do que os “federalistas”, dos chamados “pais fundadores” dos EUA, encaminharam sobre como delimitar os espaços de cada poder constituinte. A palavra final, segundo eles, seria do parlamento, e à Corte suprema, interpretar as decisões dos representantes eleitos. Aqui, o parlamento se subalternizou diante da tradição de presidências imperiais, mas a tendência agora é outra.

Aceite-se ou não, há um impasse institucional, como quando o governo apela ao STF para mudar a sistemática dos precatórios que o governo e o Congresso passados deram um beiço, quando o certo seria voltar ao parlamento e negociar termos coerentes com esta outra bruaca fiscal.

É que negociações políticas se tornaram onerosas demais, pois falta às partes unidade programática e um plano de voo mínimo. É o caso da oneração de impostos, ainda que sobre ricos e maiores empresas. E há opção? Sim. Um aggiornamento da governança da economia visando o bem comum movido a investimentos e evitando dissídios que depois levarão a decisões que todos lamentarão. Conversando, as opções aparecem.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

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