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Nenhuma prioridade substitui o imperativo do investimento – e privado, dado o excesso de impostos
A lição das arábias
Não se tome a parte pelo todo, tanto pelos resultados de mais uma viagem de Lula ao exterior quanto pela economia fechar o ano muito melhor do que o mercado financeiro previa em janeiro. O que se vê, e se prevê, não é para ser avaliado pelo valor de face. Enquanto o investimento não ditar o ritmo do crescimento econômico, incluindo a sua consequência para o bem-estar, não dá para relaxar.
Começando pela economia: vai crescer em 2023 mais do que previam os economistas dos traders de papéis da dívida pública, que não se sabe bem o motivo são os mais, ou únicos, ouvidos pela imprensa. A expectativa é que o PIB cresça em torno de 2,7% sobre 2022, quando avançou 2,9%. Mas para 2024 o PIB deve desacelerar, passada a fase do laxismo fiscal legado pela campanha eleitoral de 2022 e sem que a distensão dos juros pelo Banco Central ainda se faça percebida.
A verdade raramente presente nos discursos oficiais e em análises dos “eruditos” da macroeconomia é que a economia estará bombando o dia em que a ênfase sobre a expansão da oferta (leia-se: ênfase do investimento) vier à frente do aumento da demanda. Isso poderá ser percebido pelo aumento da produção industrial e do investimento em máquinas, equipamentos (bens de capital) e na construção civil.
Na construção, estamos 50% abaixo da média do início dos anos de 2010. E a indústria, segundo o relatório de outubro do IBGE, o seu nível de produção está próximo ao patamar do início de 2009, nada menos que 14 anos atrás, e 18,1% abaixo do pico em maio de 2011. É “uma leitura clara de um setor que não mostra maior dinamismo nem maior vigor”, reflete o gerente da pesquisa do IBGE, André Macedo.
Ele atribui tal desempenho pífio à política monetária restritiva. A rigor, a falta de crédito farto e com juros decentes vis-à-vis a taxa de retorno das atividades lícitas e a renda disponível, ainda muito baixa, explica o país ter ficado para trás na corrida tanto econômica quanto tecnológica em relação ao resto do mundo. É muito mais isso que a carência de investimento público, cujo papel serve mais como motor de partida do que de combustível do crescimento.
A conexão dessa prioridade com a visita oficial de Lula à Arábia Saudita, antes da COP28 nos Emirados Árabes Unidos, está aí: no interesse dos sauditas em aportar dinheiro grosso no Brasil.
Deslumbrados com a OPEP
Os sauditas pilotam dois grandes fundos com trilhões de dólares de recursos, que estão sendo aplicados parte na construção de uma economia não dependente da riqueza do petróleo e parte em empresas e projetos em países promissores e com perspectiva de dar retornos seguros a longo prazo. Brasil é visto como um desses locais.
Não é de hoje esse interesse, permeando o agronegócio, minerais estratégicos e indústrias com pegada tecnológica em segmentos que vão da biomedicina à inteligência artificial. O ponto de partida é um aporte de US$ 10 bilhões, ou mais, com contrapartidas de outros investidores e firme disposição do governo brasileiro. Não avançou até agora pela morosidade da burocracia. É o que deverá mudar.
Tem tudo a ver com nossas prioridades, mas até agora passou quase despercebido. Mereceu mais destaque um vídeo do ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, em que afirma a membros da OPEP que o governo deve confirmar convite para aderir ao cartel na condição de observador (categoria chamada de OPEP+, formada por 10 países, como Rússia e México, adicionais aos 13 membros plenos).
Para uma potência real, não potencial, em energia limpa, na ponta do WWS, de wind (eólica), water (hidrelétrica) e solar, não cabe o diversionismo deslumbrado da OPEP+, se até os produtores do Golfo buscam parceiros para diversificar suas fontes de renda e riscos.
Não pode também passar despercebido que essa é uma estratégia que não exclui as economias ricas, como EUA e União Europeia. O tal do Sul-Global, a frente antiocidental liderada pela China e Rússia, é mais uma construção retórica para os emergentes mais evoluídos (Índia, Indonésia, Turquia, Arábia) que uma adesão de peito aberto aos chineses.
Um programa transformador
Os fatos são difíceis de absorver quando há um caldo de cultura a turvar as formulações nacionais de governo. Mas sejam lá as visões que tiver não escapamos de estar numa senda em que as prioridades não podem diluir o investimento como necessidade vital – e suprida por fundos privados, dado a exaustão da carga tributária no país.
A economia encolheu nas últimas décadas, o que fica gritante na comparação com países como Índia, Indonésia e México, e não está exposta a esta realidade graças à exportação de commodities. Elas nos excluíram do drama centenário da insolvência em moeda forte, o mal raiz da Argentina, mas, ao contrário da manufatura e serviços, contribuem pouco à arrecadação tributária e previdenciária e para a geração de empregos, além de fomentar a concentração de renda.
Um programa transformador terá de ser puxado pela indústria, por sua vez dependente de tecnologia de ponta, de consolidação dentro dos mercados e de muitas empresas novas. E ter como ponto focal a incorporação da população ativa, 175 milhões, sendo 108,4 milhões na força de trabalho e 100,2 milhões ocupados.
A empregabilidade maciça é o jeito de diminuir sem trauma o gasto orçamentário (que os radicais pretendiam apenas erradicar).
Ah, mas estamos criando empregos, dirá o otimista. Sim, só que de baixa qualidade, além da multidão computada como empregador ou por conta própria (25,6 milhões, sendo 19 milhões sem CNPJ). Menos…
Déficit de inteligência
A esta altura deve estar claro ao governo que ter na arrecadação de impostos uma pauta praticamente única não trará crescimento, e nem apoio político. De um lado, afasta ou afastou o empresariado.
De outro, a aprovação do Congresso implica mais gasto com emendas em bases eleitorais para cevar o voto que em 2026 vai jogar contra Lula e o PT. O PT precisa ouvir mais o seu ex-líder José Dirceu.
A dicotomia entre a agenda verde e o petróleo também é ociosa. A exploração tem de ganhar ritmo, já que as previsões oficiais dizem que a partir de 2030 a produção global entrará num viés permanente de queda. Em contraponto, estamos bem-posicionados para brilharmos com soluções de baixo custo contra o aquecimento global, poluição do ar e insegurança energética.
Em suma, para não ser repetitivo: o nosso maior déficit é de inteligência estratégica, não o déficit fiscal.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Vítimas do caminho mais difícil, a economia não dispara e a política vive entre falsos impasses
Procurando sarna
Se não houver nenhum solavanco, tipo atraso no desembolso de emendas já empenhadas ou na ocupação das diretorias da CEF pelos partidos do centrão, a lei orçamentária de 2024 (LOA) será aprovada antes do fim do ano, completando mais de 12 meses de discussões entre Executivo e Congresso para aprovar projetos de lei visando criar outras métricas de controle da execução fiscal, o tal arcabouço, e aumentar impostos.
Cá entre nós: passar todo o primeiro ano de um governo de esquerda – em tese, orientado pela prioridade do crescimento econômico, expansão do emprego e da renda real das famílias e a recuperação da manufatura com investimentos em tecnologia e produtividade – submetido ao drama fiscal é frustrante e contraditório. Estivessem as finanças públicas diante do portal do inferno, com inflação descabelada e iminência de calote, irresponsável seria pôr o crescimento à frente da solvência.
Esse é o caos da Argentina, razão pela qual, depois de 80 anos de colapsos econômicos, políticos, sociais e culturais, o establishment ruiu com a eleição folgada de Javier Milei, um tipo histriônico que se diz libertário, seja lá o que queira com isso. Provavelmente, será outro farsante entre tantos na história da América Latina.
Aqui, não. Assim foi no passado recente. Depois da reforma monetária de 1994, a inflação deixou de assombrar e a riqueza do agro, minérios e petróleo engordou o caixa de divisas do país e exorcizou as crises cambiais, causa original de nossos fracassos desde o descobrimento.
Mas então, caramba, o que levou este governo a aceitar a tese de que se deveria pautar pelo equilíbrio das despesas às receitas, retomando o que a gestão derrotada só conseguiu maquilando contas e ignorando o dispositivo constitucional do teto de gasto? É desconcertante, mas as razões têm explicações. O senso de que a economia se move inflando o consumo é uma delas. Outra é que Lula herdaria um orçamento falido.
Entre pedir ao Congresso um crédito extraordinário de R$ 100 bilhões para cumprir a promessa de manter em R$ 600 o novo Bolsa Família e algo mais, como sugeriam aliados do MDB e outros, e propor a PEC da Transição, autorizando o governo a furar o teto de gastos em cerca de R$ 170 bilhões, sugestão dos caciques do centrão, o presidente optou pela quantia maior. E se enredou no cipoal do qual não mais saiu.
Dependentes do Congresso
Governo em início de mandato (embora seja o terceiro para Lula), sem maioria congressual, eleito por margem de apenas 2 milhões de votos, a expectativa é que fosse à luta com um programa de fortalecimento do investimento, especialmente privado, reformista da gestão atrasada do setor público e cauteloso, sem excessos, com os gastos federais.
O histórico de economia estagnada justificava um plano negociado com muita proximidade com o setor privado, de modo a não comprometer nem as metas fiscais nem as do Banco Central independente, além de buscar tirar máximo proveito dos fluxos de capitais pelo mundo depois da invasão da Ucrânia no início de 2022 e o agravamento da guerra fria entre China e EUA. Era, e continua sendo, uma grande oportunidade.
Fez-se o contrário, começando pela PEC da Transição. Em vez de uma autorização para gastos acima do teto até 2026, o Congresso concedeu permissão apenas para 2023, exatamente para manter em rédea curta um governo contra o qual a maioria parlamentar de centro-direita deverá enfrentar nas eleições municipais em 2024 e provavelmente em 2026.
Pôs-se, em consequência da dependência do aumento do gasto acertado com a maioria congressual, a prioridade do ajuste fiscal acima do que estivesse em pauta. E com um limitador: a restrição a corte de gasto e reforma administrativa. À equipe econômica restou propor o que vem fazendo: retirar subsídios tributários e onerar fundos de alta renda.
Tais medidas dependem da boa vontade do Congresso onde o governo sem os “neoaliados” não tem votos para aprovar coisa alguma. E eles sabem que o governo está frágil, não aceitando, por isso, ser contrariados.
Manda quem pode
O presidente vetou a desoneração da contribuição previdenciária para 17 setores, por exemplo, exceção que vem sendo prorrogada desde 2011. A maioria parlamentar programou derrubar o veto sem demora.
É bastante questionável o benefício, pensado pelo lobby da indústria como incentivo à exportação de manufaturas sem afrontar as regras de livre comércio da OMC. Ao tramitar no Congresso, enfiaram todo mundo a pretexto de ampliar o emprego formal. Não se questionou (fui um dos únicos a fazê-lo) que o custo da folha onerada por encargos reduz os salários efetivos e não bem emprego com registro. A maioria das áreas beneficiadas já foi excluída. Restaram os 17 que o Congresso estendeu o benefício, adicionando ainda milhares de municípios. É mole?
Uma análise isenta do programa fiscal que o governo propôs e aprovou no Congresso, centrado no aumento de carga tributária sem compensação no tempo e negociação prévia com o setor privado, expõe o casuísmo de tais medidas. Elas visam cobrir despesas inamovíveis e ampliadas, sem implicar mudança estrutural do gasto de custeio do setor público (com digitalização plena, por exemplo), nem o crescimento que transborde à criação de empregos inclusivos para mitigar os programas sociais.
Como nascente degradada
Se abrir o horizonte, dialogando com o empresariado e os gestores de ativos nacionais e estrangeiros, o governo poderá achar caminhos mais amplos e menos onerosos que os seguidos (desperdiçados?) este ano.
Um deles trata de maximizar a pequena porção de investimentos na LOA de 2024, cerca de R$ 68 bilhões, com emissões e aportes em fundos de ativos com gestão e recursos majoritariamente privados, destinados a atividades prioritárias, selecionadas com participação do Congresso. Importa não o controle do fundo, mas seus resultados para o país.
Outra formulação promoveria o pobre de ônus fiscal a oportunidade de desenvolvimento. Com força de trabalho de 108 milhões, 174 milhões em idade de trabalhar e PIB de US$ 2,1 trilhões, somos a última economia grande com mercado de consumo abaixo do potencial produtivo do país.
Índia deixou de ser a penúltima, crescendo 6% ao ano há mais de duas décadas, e na Indonésia, a última, a renda per capita entre 1980 e 2022 subiu 13,5 vezes, contra aumento de apenas 3,8 vezes da do Brasil.
Fiscalismo sem economia forte é como rio com nascente degradada: vai secando até restar um filete que a terra engole. O governo vai ter de procurar um recomeço, eleger um culpado e Lula recuperar condições de governar. Com o Congresso, claro, que está com tudo… e está prosa.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Distrações desviam atenção sobre a falta de crescimento parrudo, mãe de todos os nossos déficits
O tempo passa…
O tempo passa…, conforme o bordão de um antigo radialista de jogos de futebol, e seguimos entretidos por distrações – guerra em Gaza, as agendas de visitantes de ministérios, meta de déficit zero federal na lei orçamentária de 2024 etc. – que mal roçam o que efetivamente nos aflige: a falta de crescimento econômico parrudo, a mãe de todos os nossos déficits, sobretudo o fiscal. Que nos subtrai a perspectiva de um tempo melhor, enquanto o mundo passa voando jogando no ataque.
Orçamento fiscal é sempre um assunto a monitorar ao inserir todas as despesas do Estado, entre as obrigatórias (folha do funcionalismo, os déficits da previdência pública e INSS, repasses à educação e à saúde operadas por estados e municípios, custeio do Judiciário e Congresso, transferências de renda) e as contingentes (custeio da administração federal, investimentos em infraestrutura). Tais gastos, chamados de primários, não incorporam juros da dívida e excedem a arrecadação de impostos há mais de década. Os superávits primários em 2021 e 2022 se deveram mais a represamento artificial que a uma mudança estrutural.
De modo geral, o plano de contas estatal representa algo como 20% do PIB na parte federal, consumindo toda a receita de impostos e mais 1% a 1,5% do PIB de emissão de dívida pelo Tesouro Nacional. Com estados e municípios, chegamos a 34% do PIB de carga tributária mais 7,7% de déficit nominal (conceito que inclui o serviço da dívida emitida pelo Tesouro Nacional para fechar as contas da algaravia fiscal).
Olhando-se por esse prisma, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem razão ao priorizar a gestão fiscal do orçamento federal, ou seja, de suas despesas e receitas. Essa é a área de eficácia da tesouraria do Estado. Mas como outros do passado recente está enredado pelo que é mais arte que técnica, ao tentar compor intenções irreconciliáveis.
Governantes e políticos fazem do orçamento instrumento eleitoral e o alvo último dos ajustes fiscais é, precisamente, enquadrá-los todos a fim de dar ao Estado autonomia frente ao mercado financeiro.
Estamos assim desde a reforma monetária incompleta de 1994, e isso por lhe faltar a perna fiscal, chegando hoje à exaustão do plano de contas. Não há propostas estruturais para virar a tendência do gasto em qualquer situação correndo à frente da receita, com um agravante: não funciona como motor de partida do crescimento cuja falta implica mais déficit e menos capacidade produtiva e mobilidade social.
Austeridade até a eleição
Nesse puxa-estica, que lembra a metáfora da ostra agarrada à pedra açoitada pelas ondas, os ministros fiscalistas como Haddad contam com a ajuda interessada do mercado financeiro. Se o plano de ajuste, e já houve vários, ameaça desandar, o juro sobe, o dólar entra em crise, a bolsa cai, as emissões encalham e a imprensa passa a falar de abismo fiscal, precipício, e a espancar o presidente de turno.
Mas, como se sabe de antemão que o plano tem validade até a próxima eleição antes de começar a engripar, o governante sofre um cerco para não gastar a tinta da caneta e o Congresso cuida de engessar na lei orçamentária o que move seus pares: o dinheiro dos fundos partidário e eleitoral, as emendas de pagamento obrigatório a que parlamentares têm direito e as exceções que blindam os setores econômicos aos quais se ligam, como o agro e o financeiro, das “maldades” fiscais.
Assim era, com o presidente segurando a torneira das emendas a cada véspera de votação importante no Congresso para garantir os votos da base aliada por conveniência. Só que isso se foi no governo passado, com o tal do “orçamento secreto” e a Casa Civil como braço estendido da maioria parlamentar. Ambas já não estão disponíveis, e é o que está em disputa de forma meio velada. Vez ou outra para lembrar que o poder é fugaz o governo sofre uma derrota e eles voltam a conversar.
Consequências indesejadas
Essa disputa é sofisticada. Primeiro o Congresso regateou antes de aprovar o chamado “arcabouço fiscal”, que criou metas ao exercício do orçamento e sanções (brandas) em caso de descumprimento. Depois veio a ordem de cima: não cortar gasto, nada de reforma administrativa, um mínimo para gastar com infraestrutura (cerca de R$ 68 bilhões, verba do novo PAC, o programa de obras). Foi assim que surgiu o programa de recomposição de impostos federais, contando com a ajuda do STF.
Desde 1988, ano inaugural da Constituição, somos conduzidos pelo que determinam as obrigações impostas ao Estado e a caçada aos meios para cumpri-las. Começou-se com o gasto coberto pelo imposto inflacionário que o Plano Real estancou. Na sequência, nos dois governos FHC, houve um aumento brutal de impostos. A carga tributária subiu 11 pontos de percentagem em relação ao PIB até o patamar de 34% que tem se mantido desde 2003. Dramático é que assim foi com o avanço da dívida pública.
Da somatória dessas decisões decorre o esvaziamento da indústria e o emprego precário, disfarçado de microempresário individual, exigindo programas compensatórios como o Bolsa Família. E chegamos a isso: LOA com déficit estrutural, financiada por dívida com o caixa líquido dos bancos e empresas mais fortes, carga tributária acima do razoável nos termos de uma economia emergente (a maior do mundo por este critério) e juro do crédito (nem se fala da Selic) indutor de inadimplência.
O plano do déficit zero em 2024 visa suturar a ferida fiscal, mas ao contemplar apenas o aumento de impostos tem risco de provocar mais do mesmo que pretende combater. A síndrome de consequências indesejadas.
Cadê o setor privado?
A tributação dos fundos exclusivos de alta renda e de offshores tem levado gestores de ativos a procurar nos EUA e na Ásia oportunidades para deslocar o capital ocioso. Mudança de domicilio fiscal está em alta, assim como a troca de aplicações por dívida no exterior.
Quanto ao fim das subvenções do ICMS na base de cálculo de tributos federais e dos chamados Juros sobre Capital Próprio (JCP) o problema é que são tratadas como meios de evasão do imposto devido. É fato, só que em muitos casos foi o meio de manter uma empresa no Brasil vis-à-vis o ônus tributário menor em países como México, EUA etc. Isonomia tributária tem mérito inatacável, mas no bojo da reforma da renda, e não como casuísmo para cobrir gasto fiscal de relevância duvidosa.
Nada disso está sendo considerado, apesar dos alertas ao Congresso e ao governo no sentido de que ajuste fiscal não substitui o que não há faz muito tempo: uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo.
Sem isso, resta o que temos: estagnação, ajuste fiscal permanente e dependência perigosa de commodities. Já passa da hora o setor privado parar de dar de ombros e se voluntariar como parte da solução. Como, aliás, até as centrais sindicais estão pedindo.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Apesar do enxame de lobbies, Congresso vai entregar a mais relevante reforma desde o Plano Real
Um passo à frente
O processo de aprovação da emenda constitucional que cria o imposto sobre o valor adicionado substituindo três tributos federais, o ICMS dos estados e o ISS dos municípios escancarou o nível raso do debate político e a ignorância dos que comentam sobre o que não sabem.
Para alguns, a PEC 45, aprovada no Senado e que volta à Câmara para avaliar as mudanças votadas pelos senadores, foi “vitória de Lula”. A oposição votou contra, com Jair Bolsonaro afirmando que a reforma foi “proposta por aquele que tem orgulho de ser chamado de comunista”. Os petistas cumprimentaram o ministro Fernando Haddad. Numa entrevista, um economista tentou corrigir o festival de desinformação e atribuiu o projeto ao deputado Baleia Rossi, MDB-SP, que subscreveu a PEC 45 original levada à Câmara em abril de 2019. Chegou perto, mas errou.
A reforma vem da dedicação do economista Bernard Appy desde que no Ministério da Fazenda entre 2003 e 2009 era o interlocutor do think tank acionado para formular reformas, como a da previdência, a da tributação geral, das debêntures, da exploração do pré-sal etc. Com a crise do mensalão, a tributária foi para a gaveta. Anos depois, Appy a recuperou nos termos atuais, tendo o apoio de algumas empresas.
Presidente da Câmara de 2016 a 2021, Rodrigo Maia gostou do projeto, cujas linhas estavam na Ponte para o Futuro, o programa de reformas norteador do governo Michel Temer (2016-2018). Não fosse o infortúnio de Temer vis-à-vis a ação da PGR, já abrindo caminho para Bolsonaro, e as reformas da previdência e a tributária teriam passado com Maia.
A primeira passou com ele e David Alcolumbre no Senado em 2019. A tributária está passando agora. Os governantes, em cada uma, não se esforçaram para aprova-las. A tributária foi compromisso de Arthur Lira durante sua campanha para reeleição da direção da Câmara. E foi sua decisão de manter a relatoria da PEC 45 com o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) o que a fez tramitar com relativa tranquilidade.
Portanto, os méritos da reforma que chega atrasada desde que em 1988 a Constituição foi promulgada são de Maia, Lira, Aguinaldo, Baleia e, como formulador, Appy, chamado por Haddad para assumir a secretaria responsável pelo suporte técnico ao Congresso na condução da PEC 45.
Pior do que está não fica
O desconhecimento sobre a mais importante decisão da legislatura atual é limítrofe às muitas exceções incorporadas ao texto original. Ele previa somente uma alíquota, embora seus autores assim o fizessem para negociar no parlamento – que tem a prerrogativa exclusiva em questões constitucionais, sem envolver o presidente da República.
Sabiam que duas a três seria o formato politicamente possível. Será mais que isso. As exceções, premiando setores empresariais com acesso às decisões políticas, foram inseridas na emenda à Constituição como uma percentagem da alíquota principal, ainda incerta, pois dependente da trava segundo a qual a nova arrecadação não poderá exceder a atual – com base na métrica de proporção do PIB, cerca de 12,5% do produto.
Ainda assim, ao eliminar a cumulatividade da cobrança de impostos ao longo da cadeia produtiva, o resultado da reforma é muito superior ao sistema atual – uma colcha de retalho em que nenhum analista honesto ousa estimar uma alíquota média. A de referência do novo sistema deve até 27%, embora pessimistas falem em algo próximo a 30%.
E ela se compara com o quê? Com certeza, não se sabe. Mas, tomando-se o total da arrecadação sobre o PIB dos cinco impostos como medida, as alíquotas atuais devem ser de 34% para mais. Então, pior não fica.
Mais ou menos progresso
Valorizou-se a simplificação da complicação tributária com o fim do ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins por um IVA dual, dividido apenas para fins arrecadatórios pela CBS federal e o IBS de estados e municípios.
Mas o maior mérito está no potencial de revigorar a manufatura, que tende à irrelevância no Brasil – um crime diante da dimensão do país e do maior mercado de consumo de massa do mundo ainda inexplorado em boa parte. Tal como se viu no passado nos EUA e na Ásia no presente, indústria forte é o que move a área de serviços, maiores empregadores – do varejo e salões de beleza a softwares, games, cultura e lazer.
Cada regime especial com taxa de 40% a 70% da alíquota de referência – que será aplicada cheia a toda a indústria -, imporá perda ao desenvolvimento nacional. Com a maior bancada no Congresso, o agro já altamente beneficiado pelo crédito subsidiado e uma tributação das mais frouxas será o grande beneficiado. No fim, o ônus será duplo aos mais prejudicados: nós todos, com mais impostos nos bens e serviços e com uma taxa de progresso econômico menor do que poderia ser.
Ainda assim, o resultado esperado tende a ser melhor que deixar como está nosso obsoleto sistema tributário. E há a expectativa de que nas mãos hábeis do deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da PEC na Câmara, a emenda constitucional remendada no Senado tenha algumas melhorias.
A “inteligência” sumida
A questão de fundo, subestimada pela inteligência nacional, é o que o governo pensa fazer para romper a retranca do financismo e do viés fiscalista que solapam o crescimento desde o fim do desenvolvimento dos anos 1950 a meados de 1980.
Grandes reformas, como a trabalhista, a previdenciária, dos marcos regulatórios, por si, só são eficazes se estiverem associadas a uma política econômica focada no investimento que amplie a oferta, em vez de atiçar a demanda, esse erro populista.
Se se inspirar na reindustrialização em curso nos EUA, política com selo bipartidário, buscará tirar o investimento para infraestrutura do orçamento, que é pouco, menos de R$ 100 bilhões, visando maximizá-lo com fundos privados e com foco também em máquinas, equipamentos e a manufatura, inclusive médias indústrias, na fronteira tecnológica.
O crédito bancário de curto a longo prazo também precisa passar por um choque de oferta, que é o jeito eficaz de levar à queda dos juros. Fundos de crédito, que tem nos papéis de dívida de empresas seu ativo principal, são uma opção interessante.
Tais diretrizes implicam outra política econômica, sem a dependência de metas fiscais mas mantendo a atenção sobre a eficiência do gasto público ordinário e a taxa de inflação.
Crescimento econômico puxado pela oferta à demanda interna e externa tende a reforçar o caixa de impostos, a reduzir o gasto social devido à abertura de mais empregos formais e põe o avanço da produtividade à frente das políticas de incentivo aos negócios. Sem uma combinação de tais fatores, atraso e desunião política continuarão no horizonte.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Ainda que não houvesse o cenário de riscos globais, ater-se aos temas fiscais revela imprudência
Essa agenda é pequena
Considerando a apreensão global com os cenários de guerra na Europa, no Oriente Médio e na Ásia, as discussões em Brasília no governo, no Congresso, no Judiciário e entre os três poderes parecem distrações.
É certo que o tema da vez é e sempre será relevante: o financiamento da Lei Orçamentária Anual (LOA), que resume as obrigações e os planos do governo federal. Mas passar quase o ano inteiro preso a essa pauta indica disfuncionalidades graves tanto da gestão do Estado quanto de suas relações com o Congresso, a última instância do plano de contas, e os entes federativos. Eles contam com repasses obrigatórios e os de emendas parlamentares para seu custeio permanente e obras miúdas.
A política imperfeita, reunindo presidencialismo forte e parlamento moldado pela Constituição como se o regime fosse parlamentarista, ao mesmo tempo em que o STF o enfraqueceu ao julgar inconstitucional em 1995 a cláusula de barreira para vedar representação de partidos com baixo votação, dispersou a responsabilidade fiscal. E tornou espúrio o mecanismo regular de formação de maioria pelo presidente de turno.
O Congresso restaurou parcialmente o que o STF glosou em 1995, mas o fez numa versão mais branda que a original, sem esvaziar a formação de partidos mercantilistas que servem ao governante da vez em troca de facilidades políticas para seus membros e outros fins nada nobres.
Esse já era o cenário nos quatro governos petistas desde 2003, fez-se ainda mais desestruturado na gestão Bolsonaro, quando ele cedeu a execução orçamentária para os partidos de centro-direita apoiá-lo e afastar a ameaça de impeachment por suas atitudes na pandemia e pelos ataques à Corte suprema. O próprio STF pôs ordem na casa, no fim do ano passado, ao declarar inconstitucional o tal orçamento secreto.
Só que entre as opções que dispunha para gerir o orçamento maquilado de 2023, uma peça equilibrada só no papel, Lula não se apegou ao que o STF dispôs e aceitou a devolução de metade das emendas geridas pelo tal orçamento secreto, ou RP-9 pelo jargão técnico, com a expectativa de que a Câmara e Senado não lhe criariam embaraços. Foi assim que se votou a PEC da Transição, abrindo espaço de R$ 168 bilhões de gastos.
Parasse por aí e talvez as relações políticas se normalizassem. Mas se quis mais do Congresso, cuja maioria até ontem apoiava Bolsonaro, e isso com o mundo em desordem. Esse jogo não está jogado. Lá e aqui.
As opções à frente de Lula
Ainda em dezembro interlocutores do presidente lhe disseram que não esperasse tanto do Congresso, priorizasse o crescimento como forma de aumentar a arrecadação dando força ao investimento, trouxesse para o centro das discussões o setor privado e se preocupasse menos com os temas da agenda do mercado financeiro, exceto a reforma tributária, que, a rigor, é um projeto do parlamento e não do executivo.
Ele chegou a convidar dois nomes expressivos e com alta densidade política para o Planejamento e o MDIC – o economista André Lara Resende e o industrial Josué Gomes da Silva.
Por razões da ocasião, ambos não puderam aceitar o convite, desequilibrando as discussões sobre política econômica e desenvolvimento junto a ele. Mas já era o indicativo de que Lula procurava opções à ortodoxia mercadista.
Depois vieram o tal do arcabouço fiscal e os projetos de aumento da arrecadação dos impostos corporativos e dos mais ricos, dando foco ao Congresso. Eles contrariam a representação dos partidos majoritários no Congresso, sobretudo o empresariado, de modo que os aprovar custa ao governo entregar seus anéis, como a direção da CEF. Assim estamos.
Não é só desossar o gasto
O caminho alternativo poderia ter sido, em primeiro lugar, tirar boa parte do investimento público da LOA e trata-lo como parafiscal. Das propostas que moldam esse caminho, todas preveem aportes em fundos de ativos com gestão e funding privado em alto volume. É o que o próprio programa de obras do governo, o novo PAC, prevê. O dinheiro privado detém mais de 60% das projeções do investimento necessário do PAC.
A vantagem desse sistema é que ele não compromete as metas da LOA, em especial o resultado primário, sem juros, que o ministro Fernando Haddad gostaria de zerar em 2024 e atingir um superávit de 1% do PIB em 2026.
Também permitiria focar a melhoria da gestão do Estado, uma missão, já nem mais projeto, pois no mundo das relações digitais e o domínio crescente da inteligência artificial não cabe mais, entre outras obsolescências, arrecadar imposto pelo processo declaratório.
Lula se fez ouvir ao declarar na sexta-feira que “para quem está na Fazenda dinheiro bom é dinheiro no Tesouro, mas, para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”.
Não, ele não advogou gastança, como porta—vozes do fundamentalismo do mercado na imprensa correram a criticar. Expressou que controle fiscal é uma conta com duas entradas: gasto no numerador e produto, ou seja, PIB, no denominador. Não é só desossar o gasto, é também engordar o PIB.
Ponto sem retorno no mundo
Fato é que, tanto pela mudança estrutural das exportações, com agro, minérios e petróleo bombando a entrada de dólares, quanto pelo mundo com a geopolítica confusa e ameaçadora, não cabe ao governante nem aos políticos operar a economia na defensiva. E que não haja guerra.
Como disse o CEO do JP Morgan, Jamie Dimon, podemos estar no momento “mais perigoso que o mundo já viu em décadas”. E não só pelo risco de guerras convencionais. É que, nos últimos 22 anos, EUA e seus aliados têm exercido cada vez mais o poder económico em vez da força militar.
O resultado é o fechamento do fosso entre finanças e guerra, segundo ensaio na revista Politico de Josh Lipsky e Julia Friedlander, ambos analistas renomados em segurança global. Isso é um mundo novo.
Uma coisa são as sanções comerciais e financeiras contra Cuba, Irã e Coreia do Norte. Outra é contra a Rússia, potência nuclear, incluindo o confisco de ativos no exterior e contas bancárias, algo como US$ 300 bilhões, sugerindo igual ameaça contra a China conforme evolua a questão de Taiwan.
“Será que Washington entenderá as implicações para a sua formulação de políticas daqui para frente?”, eles indagam.
Se Washington entende ou não, é com eles. Nós é que não podemos ser pequenos e ignorar as transformações que passam em tempo real diante de nossos olhos. A imprudência transcende eventuais restrições fiscais.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Compensa mais reduzir as ambições e apoiar a reforma tributária meia-boca que deixar como está
Antes isso que nada
A economia sempre meio cheia, meio vazia, à mercê da bipolaridade entre a dita prioridade do equilíbrio das receitas e despesas do orçamento federal e o mandamento maior da popularidade dos políticos eleitos, é a marca dos nossos tempos: marca do crescimento meia-boca.
É uma característica tão enraizada que a palavra “desenvolvimento” é mais tema de propaganda institucional, equivalente a expressões vagas tipo “economia verde” e “sustentabilidade”, que provida dos atributos que lhe seriam inerentes: juro baixo, crédito farto, investimento no topo das prioridades dos orçamentos públicos e privados, a tributação enviesada em favor da inovação tecnológica e do dinamismo empresarial e não como meio exclusivamente arrecadatório para gasto corrente etc.
E é também o que explica o grande apoio à reforma tributária que vai substituir cinco impostos sobre o consumo por três outros com o fim de simplificar a rotina tributária mantendo a arrecadação em termos de proporção do PIB, distribuída entre o naco federal e o dos estados e municípios. Respectivamente, a Contribuição e o Imposto sobre Bens e Serviços (CBS e IBS, as novas siglas para o PIS/Cofins e o IPI, no nível da União, e para o ICMS e ISS, no plano federativo).
Ah! A reforma se completa com o também novo Imposto Seletivo, com os fundamentos de tributar atividades, digamos, perniciosas, como tabaco e álcool, adicionadas dos bens e serviços nocivos ao meio ambiente. E claro: mais um sortido de exceções, com alíquotas menores que as que serão legadas à indústria, o filho enjeitado da economia movida pelas commodities de exportação e transferências de renda, já que, de outro modo, Brasília seria sitiada por multidões de famélicos.
Ainda assim, essa reforma aprovada na Câmara e tramitando no Senado sob a forma de emenda à Constituição colhe mais apoio que críticas – estas, amenizadas pelas exceções dadas aos setores econômicos que há tempos substituíram a mediação de suas entidades pela eleição direta de parlamentares. Apesar disso, compensa mais uma reforma mediana ou meia-boca que manter o nefasto e obsoleto sistema tributário atual.
A fila andou na política
Entende-se o fim de linha em que nos encontramos quando as ambições sobre o que esperar das instituições encarregadas de moldar o futuro da economia são as mínimas possíveis. O que vai bem ou não se queixa não se explica só pelos conceitos de eficiência, tipo produtividade, ou por ser altamente competitivo vis-à-vis a concorrência externa.
Ter votos na Câmara e no Senado, independentemente de partidos, vale mais que manifesto de entidade empresarial ou simpatia do mandachuva da vez. Isso vai do agro aos transportes, entre outros, em detrimento de setores mais expostos politicamente como o financeiro e indústria.
Isso explica os ataques a qualquer programa de apoio à indústria, em geral por economistas para os quais política industrial é palavrão ou sinônimo de compadrio. São os mesmos que olhavam de lado para o tanto de facilidades estendidas ao agro e que hoje se surpreendem com o uso de sua ortodoxia fiscalista contra o setor financeiro. É como se diz: a fila andou na política… E quem não tem padrinho morre pagão.
O agro e seus cento e tantos deputados trabalham direitinho. Com uma participação no PIB de pouco mais de 7%, sua carga tributária é só de 0,6%. O agro se diz “pop”, enquanto a indústria de transformação (que faz a Ásia ser o centro dinâmico do mundo) responde por 12,9% do PIB e 30,4% da fatura total de impostos. Os bancos tão criticados, com peso de 9% do PIB, entregam 21% da receita total de impostos.
Mérito maior da reforma
As discrepâncias entre a participação dos setores econômicos no PIB e sua contribuição para a receita tributária distorceram a proposta original concebida para criar a tributação sobre o valor adicionado com alíquota única, nenhum regime especial nem de base tributável ao gosto do freguês e eliminar o maior absurdo: a cobrança cumulativa.
A cobrança cumulativa tende a desaparecer quando a nova sistemática estiver totalmente implantada, e esse é o mérito maior da reforma, mas as exceções serão mantidas como preço a pagar pela aprovação do cerne da emenda constitucional. A exceção começou na Câmara quando deputados do agro condicionaram seus votos à manutenção da carga tributária do setor. Outros fizeram igual e a coisa cresceu.
Faz todo sentido, assim, que o relatório do senador Eduardo Braga ao menos acatou proposta do presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, de impor uma trava para a alíquota de referência do IBS/CBS, aquela a ser aplicada aos setores “desapadrinhados”. É confiar desconfiando.
E o IBS/CBS será pior que IPI, PIS/Cofins, ICMS, ISS? Não. Mesmo com tais lambanças, a erradicação da cobrança cumulativa justifica fundir esses tributos em um único (já que a divisão IBS e CBS é para apartar a arrecadação, com a mesma legislação para ambos).
Nem por isso se deve ignorar que o Congresso perde a grande chance de contribuir para um salto de qualidade da atividade econômica no país.
Drucker tem algo a dizer
Outros ajustes são esperados na votação, no Senado, do novo texto do IVA e, depois, na Câmara, que vai apreciar as mudanças.
Um ajuste será de bom senso: o restabelecimento da trava votada pela Câmara e tirada pelo relatório do senador Braga que vedava aumento de alíquota para operações de crédito dos bancos. Se for para mexer aí, é para tirar o que onera o custo do dinheiro. Tributar financiamento, que é o oxigênio da economia e quem paga é o devedor, não banqueiro, é raríssimo no mundo. Não confundam com o lucro, tributado pelo IR.
Mas agora que o presidente Lula descartou a meta do déficit zero do ministro Fernando Haddad no orçamento de 2024 – “Não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo um corte de bilhões nas obras”, ele disse – espera-se que diminua o aperreio por medidas com risco de mirrar o crescimento e, portanto, a arrecadação.
O presidente e as lideranças do Congresso precisam alargar as visões para entender o que fazer para reaver o desenvolvimento perdido e se alinhar aos eleitores. Peter Drucker, o grande guru da administração moderna, tem algo a dizer: “O maior perigo em tempos de turbulência não é a turbulência – é agir com a lógica de ontem”. E vale também seu maior aforismo: “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Choque entre superpotências põe Brasil no foco dos fundos globais, apesar do ceticismo dos míopes
Perigos e oportunidades
Apesar do tenso ruído de guerra, o país está diante de oportunidades singulares no mundo conflagrado. Afinal, não foi trivial no mesmo dia em que Joe Biden e Benjamin Netanyahu se reuniram em Telavive, após o ignominioso ataque dos terroristas do Hamas a Israel, as principais expressões do chamado Sul Global contrárias à Pax Americana, Vladimir Putin e Xi Jinping, trocarem afagos e declarações de apoio em Pequim.
Hoje, damo-nos bem com estes senhores da guerra. E isso tem valor para além da retórica da diplomacia e das moções nas Nações Unidas.
É a hegemonia dos EUA que foi contestada quando a Rússia invadiu a Ucrânia e a China promoveu a aproximação entre os dois maiores rivais do Islã, a Arábia Saudita da vertente sunita do islamismo e, em tese, aliada dos EUA e o Irã xiita, hostil aos americanos e a Israel.
Inimigos declarados, como o Irã, uma teocracia severa, em boa parte pelo apoio irrestrito de Washington a Israel, ou dissimulados, como a Rússia de Putin, cismado com a desestabilização que destruiu a União Soviética, e a China de Xi Jinping em ascensão a superpotência, são sequelas da disfuncionalidade da democracia dos EUA, vitimada pela ideologia do fundamentalismo de mercado. Essa é a tendência de fundo.
O que chamam de “neoliberalismo” arruinou, a partir dos anos 1970, o pacto social vigente nos EUA desde a 2ª Guerra, implicando o fim da mobilidade social, que parecia irrefreável, e fez emergir a carga de ressentimento, especialmente da classe média branca pouco instruída, numa sociedade com entranhas racistas e impelida à desigualdade.
A eleição de Donald Trump em 2016, a invasão do Capitolio pelos seus apoiadores, instigados por ele ao não reconhecer a derrota para Biden em 2020, o colapso do sistema bipartidário, expõem o fim de uma era.
Ela já foi repudiada pelos eleitores de Trump e de Biden, que devem reencontrar-se nas urnas em novembro de 2024, sem que outro pacto tenha nascido, gerando crises patéticas como a vacância do comando da Câmara, apesar de o Partido Republicano ter a maioria dos deputados.
Todos estes desenvolvimentos indicam que o mundo pode ter caído num novo período de desordem, segundo David Leonhardt, do New York Times – um evento global, que abala até a China. É um perigo que a eleição de Lula bloqueou, mas ainda falta fazer muito mais para erradicá-lo.
Porto seguro global
Críticos da equidistância de EUA e Europa, de um lado, e de China e Rússia, de outro, com viés pró o dito Sul Global, marcas da atuação internacional de Lula, afirmam que o presidente quer mudar o mundo.
É o que as suas não poucas derrapadas ao falar de improviso sugerem, mas talvez não por ele, mas pelo antiamericanismo antiquado de sua assessoria de relações externas. O Lula de dois mandatos exitosos tem consciência de que a retaguarda produtiva de um país é o que projeta a expressão de poder das nações. Essa é a mudança que não aconteceu.
E não acontecerá se seu governo, associado ao Congresso, não souber equilibrar as propostas para elevar a produtividade da economia, caso da reforma dos impostos indiretos, seguida depois de sua aprovação da sobre a renda, com a mitigação da ortodoxia fiscal e monetária.
Ainda agora passa batido o fato de que os movimentos de fuga para a segurança que cada vez mais influenciam os capitais no mundo não têm só o dólar, portanto, os EUA, como porto seguro. Isto é relevante.
Graças às reservas acumuladas desde o primeiro governo de Lula e às excepcionais exportações de bens agrícolas, minérios e petróleo, “o Brasil está se tornando um porto seguro global”, de acordo com Robin Brooks, economista-chefe do IIF, think tank dos bancos globais e ex-chefe da área de moedas do Goldman Sachs.
“A fuga para a segurança está impulsionando real”, diz ele, “e essa é uma nova dinâmica que também vimos em 2022, depois da Rússia ter invadido a Ucrânia”.
Um financista otimista
Brooks sustenta desde 2019, quando o real começou a se depreciar por causa da tese tola de que ajudaria a reindustrialização, que o câmbio justo seria da ordem de R$ 4,50 por dólar. Uma ligeira apreciação do real ajudará a distensionar a inflação sem tirar competitividade das commodities, todas, sem exceção, campeãs em produtividade.
Este é um indicador poderoso para levar o Banco Central a ignorar os alertas mal-informados de economistas do mercado financeiro de que se o Federal Reserve seguir elevando a taxa básica nos EUA, agora em 5%, ou mantê-la por tempo acima do razoável, a Selic atualmente em 12,75% deveria estacionar ao redor de 10% a 11%.
Isso é bulshitt nos termos do que diz Robin Brooks, e razão da pechincha dos ativos nacionais.
O ministro Fernando Haddad deve intuir, dos encontros com dirigentes de fundos de ativos, que, mesmo sem mudanças substantivas nos números fiscais e monetários, o país está na iminência de enfrentar um salto quantitativo de investimentos de médio e longo prazo. Bastam sinais de que a Selic tende a 8,5% a 9%, o déficit do orçamento federal não tenha viés crescente nos próximos anos e a prioridade será no sentido de faciliar a produtividade empresarial e o avanço tecnológico.
Mas e a inflação? Está confortável e vai seguir frustrando a turma do chilique, como em setembro, quando ficou abaixo do previsto.
Os inimigos do Brasil
Vale para o Brasil o que o economista Paul Krugman escreveu em sua coluna regular no The New York Times: “Sim, a Pax Americana está em declínio”. Mas “os inimigos estrangeiros da democracia” não são o problema, “é o inimigo interno”. Por analogia, inimigo do Brasil é a falta de crescimento econômico decente, com mobilidade social.
Inimigo do progresso com bem-estar, por exemplo, é a indústria de transformação responder por 12,9% do PIB e por 30,4% da arrecadação de impostos, sendo ela a atividade que dinamiza os serviços, maiores empregadores do país. Ou a banca, vilã das narrativas, ter um peso de 9% do PIB e 21% na receita total de impostos. Se a carga for mais bem distribuída, isentando investimentos produtivos e pondo teto para a alíquota de referência, como diz que fará o relator da reforma do IBS no Senado, senador Eduardo Braga, já será um grande avanço.
Mas precisa mais, muito mais, para a economia ser a retaguarda forte que o presidente busca para reprojetar o Brasil no mundo. Se voltar a dar ouvidos aos que acreditam no nosso potencial, o presidente poderá se sair muito bem aqui e nos fóruns globais. Mas esse movimento é tão forte que tende a vir mesmo sem apoio oficial. Só será mais lento.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Regime fiscal onera impostos, calça gastos eleitorais e pisca ao BC para baixar a Selic. Vai funcionar?
3 em 1 do arcabouço
Vamos ser atrevidos e supor que a meta do déficit zero do orçamento federal de 2024 seja alcançada. Isso exige que o Congresso aprove os projetos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar o IR de empresas e fundos e cortar incentivos fiscais com base no ICMS.
São medidas difíceis politicamente. Elas oneram os contribuintes de maior renda, justamente aqueles capazes de acelerar os investimentos como querem o governo e os milhões de brasileiros desesperançados com a estagnação iniciada com a desindustrialização no fim dos anos 1990.
Então, com tantos riscos, tem que valer a pena. Vai valer?
Não se sabe se o programa que substituiu o teto de gasto corrompido na gestão passada para reeleger Bolsonaro terá eficácia. É o tal do “arcabouço fiscal”, definido pela Lei Complementar 200. Nela não há, explicitamente, a meta de déficit zero em 2024. É uma promessa.
A intenção – esta é a palavra apropriada: intenção – é que em quatro anos de governo Lula o saldo primário (receitas menos despesas sem os juros da dívida pública) saia do negativo, algo como 1,1% do PIB este ano, para o positivo. Para 2024, o intervalo de variação é de -0,25% do PIB a +0,25%. Zero é a meta de Haddad, subindo para +0,5% em 2025 e +1% em 2026. Numa conta de padeiro, o quadriênio fiscal do terceiro governo Lula teria um saldo positivo de 0,4 ponto de percentagem.
Mas o mercado financeiro está cético. No último boletim Focus do BC, o saldo primário sairia de -1,1% do PIB este ano para -0,83% em 2024, -0,6% em 2025 e -0,4% em 2026, consolidando um déficit de 2,93 pontos percentuais nos quatro anos da administração federal.
Para o orçamento zerar em 2024, o governo precisa encontrar R$ 168,5 bilhões, cerca de 1,5% do PIB. Parte poderia vir melhorando os gastos das rubricas da LOA, só que não, elas vão crescer. Resta onerar o IR, já que os demais grandes impostos federais (IPI, PIS/Cofins) compõem o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), assim como o ICMS e ISS, na reforma aprovada na Câmara e agora tramitando no Senado.
Mexer com o IR antes da reforma da renda prevista para depois do IBS surgir não faz sentido. Mas assim está dado. E o que vai acontecer?
Nada. O investimento mínimo para sairmos da mesmice é privado, dada a penúria das contas fiscais. Ele existe, mas não aceita desaforo.
Analisem JK e Lula 1 e 2
Projetos nacionais com grandes objetivos, num mundo em que tudo está conectado 24 horas todos os dias e setores econômicos inteiros estão ameaçados por novas tecnologias e modelos de negócios, são por demais complexos e sofisticados para serem concebidos por grupos fechados.
Já era assim na época do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1960, quando boa parte da formulação dos investimentos veio de grupos executivos, integrando governo, academia, empresas e bancos.
Foi assim nos dois primeiros governos Lula, com os principais planos e programas formulados fora da estrutura rígida dos ministérios, mas com forte conexão com os objetivos do presidente e sua base política.
Não se afasta também a cabeça macroeconômica do corpo dos projetos, entre obras de infraestrutura e modernização setorial do agronegócio, mineração, indústria e serviços. Os programas sociais são a forma de a realização empresarial promover a renda pela geração de empregos e amparar os segmentos da população deixados historicamente à margem.
O fato é que não se confirmou em nenhum lugar do mundo a ilusão de que, se o Estado for mínimo e os indicadores chaves da estabilidade econômica estiverem sob controle, o crescimento movido pela expansão do capital produtivo seria a consequência feliz. Nem nos EUA, onde a ideologia fincou raízes e desde Trump vem sendo erradicada pelo medo de que a maior economia do mundo vire filial do capitalismo chinês.
É assim que estamos: entretidos por normas contábeis do Estado como se a solvência pública estivesse ameaçada e o milagre do crescimento viesse do equacionamento dos fluxos de receita e despesa. Ora…
Capital privado não falta
Desenvolvimento se faz com visão do que desenvolver e reforçar o que já está desenvolvido. Dinheiro para tanto daqui e de fora não falta.
No primeiro caso, candidatos visíveis são as novas energias (eólica, solar, hidrogênio), veículos a bateria, adequação urbana a sistemas inteligentes, a indústria da saúde e tudo o que vem da tecnologia de informação e inteligência artificial. No segundo, já passa da hora a verticalização das cadeias de valor do agro, inclusive com marca e certificação ambiental, e a exploração de minerais estratégicos para as energias limpas como oportunidade para a reindustrialização.
Há também um sem-número de empresas com boa posição de mercado, mas carentes de tecnologia para renovar o que faz, com gestão obsoleta, passivos fiscais e, não raro, com problemas de sucessão do fundador.
O governo, e cada vez mais o Congresso, pode muito na economia, mas, em geral, ajuda a impulsionar o crescimento quando tem as suas contas razoavelmente em ordem e compreende o que atrai o capital. Hoje, por exemplo, os fundos que aplicam em empresas procuram oportunidades no mundo, dando atenção aos mercados emergentes como Indonésia, Índia e, nas economias desenvolvidas, EUA, Japão, Cingapura, tratada como hub de capitais privados chineses para diversificação de riscos.
Ao Brasil, considerando reformas como a tributária e possivelmente a administrativa, além de novos marcos regulatórios em saneamento, gás e portos, entre outros, falta interlocução livre com as instâncias de decisão de investimentos privados. O resultado pode surpreender, já que pedidos ditos “especiais” não são a prioridade da vez.
Brasil como bola da vez
É possível que esforços fiscais com vistas a retorno político rápido no cenário polarizado que a decadência de Bolsonaro não fez arrefecer possam ter implicações mais negativas que o resultado esperado. Ainda mais quando sugerem atomização da autoridade governamental.
É o que se vê com a falta do governo na disputa entre emissores de cartões e as empresas de maquininhas. Os bancos ficam com o risco do crédito, enquanto o modelo de negócios das chamadas credenciadoras se baseia na antecipação a lojistas de seus recebíveis. O negócio cresce quanto maior o prazo de venda e, assim, o risco de inadimplência. Sem solução, o Congresso interveio e aprovou lei dando 90 dias para que o acordo se faça ou a cobrança não poderá exceder 100% do valor devido.
Também surpreendeu o corte do juro máximo do consignado, reduzido a 1,91% ao mês em agosto, para 1,84% sem que CMN, BC e Fazenda fossem ouvidos. E a portaria do Ministério das Cidades zerando as prestações do Minha Casa, Minha Vida a assistidos pelo BPC e Bolsa Família.
Fica a impressão de que o déficit zero em 2024 é álibi para aumentar a arrecadação e vitaminar programas sensíveis ao eleitor visando as eleições municipais de 2024. Mas, se o Brasil é bola da vez no mundo e a economia em boa estado promove a avaliação do governante, deixar o capital privado fluir tende a ser mais eficiente que qualquer arranjo fiscal.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Agenda fiscal sem consenso empresarial e maioria parlamentar não é um caminho promissor
Prioridade é crescer
Dez meses de discussão sobre a condição do orçamento federal, depois de oito anos tumultuados, do segundo mandato de Dilma às estripulias de um governo com índole golpista e fundamentalista ma non troppo na economia, convenhamos, é tempo demais, e desagradavelmente chato para um presidente com vocação social progressista e sem maioria parlamentar.
Dá-se prioridade a um programa de ajuste fiscal quando a insolvência da dívida externa, como se encontra outra vez a Argentina, ou interna bate à porta. Nos afastamos desta chaga, para resumir, com a reforma monetária de 1994, as reservas acumuladas depois de 2003 e os altos superávits da balança comercial graças à exportação de grãos, carnes, minérios e petróleo. As contas correntes do país estão saudáveis.
Também não são os déficits orçamentários sequelas da arrecadação de poucos impostos, longe disso. Uma reforma tributária decente deveria ter por princípio reduzir a imposição contributiva, hoje de 34% do PIB. O problema é o gasto, e não bem por ser elevado e, sim, por ser de baixa qualidade devido às disfuncionalidades da gestão do Estado, das relações federativas e de uma governança crescentemente ineficaz.
A parte fiscal, portanto, é o nó a desembaraçar. O país tem déficit recorrente na lei orçamentária tanto da parcela que exclui os ônus da dívida pública, chamada de déficit primário, cerca de 1% do PIB este ano, quanto da que os inclui, o déficit nominal, previsto em 7,4% do PIB para 2023. O governo optou por enfrentar este gargalo elevando os tributos de empresas e bancos mudando as regras de incidência.
O fez, ao conseguir do Congresso autorização para reaver a regra com base na qual empates no conselho que examina pendências tributárias, o Carf, favorecem a União, não o contribuinte, conforme esta prática universal. E o faz com medidas tramitando no Congresso que oneram os fundos de investidores de maior renda aqui e fora (as offshores) e barram a extensão dos incentivos do ICMS aos impostos federais, entre outras ações com igual propósito.
Esta via de enfrentamento das mazelas fiscais pelo aumento de carga tributária, desconsiderando o reexame dos subsídios e dos gastos do setor público, tem várias implicações. A principal compõe a crônica política cotidiana: a dependência do governo dos partidos do chamado centrão. Menos aparente é o crescente mal-estar no setor privado.
Contradições de origem
O pano de fundo desta macroeconomia embute contradições de origem. Ela pressupõe que os juros altos da política monetária operada pelo Banco Central brotam da semeadura dos gastos públicos a descoberto, implicando emissão de títulos de dívida pelo Tesouro Nacional. Mais: alimentam a demanda por meio de transferências de renda fiscal, que jogam lenha na inflação, afastando-a da meta perseguida pelo BC, 3%.
Quanto mais dívida, maior a pressão de traders do mercado financeiro por maiores rendimentos e menor disposição para desentocar os fluxos de capitais estacionados na tesouraria de bancos e empresas com caixa líquido aplicados em papéis sem risco do Tesouro, indexados à Selic.
A lógica fiscalista do aumento da receita sobre a renda de grandes empresas e pessoas mais ricas tem este fundo, que também explicaria o crescimento econômico pífio das últimas décadas. E por que não agir também sobre a despesa? Porque isso é o que o governo Bolsonaro fez, mas de modo provisório, congelando a folha do funcionalismo público e estrangulando o custeio de serviços à população.
A contradição é que a despesa voltou a crescer, conforme prometido na campanha eleitoral, além de iniciativas para tirar obras públicas paradas pelo país, e são milhares, com programas como o novo PAC. O grosso dos capitais necessários será privado, mas há a expectativa de que o orçamento libere algumas dezenas de bilhões para o investimento público agir como ignição da roda do desenvolvimento.
Ouviram o empresariado?
A contradição é que o BC, com os juros ainda excepcionalmente altos, embora agora a 12,75%, depois de ficar em 13,75% por mais tempo que o razoável, busca o “terreno contracionista”, como repete nas atas do Copom. Qualquer movimento para a economia andar a um ritmo maior que o pretendido pela taxa Selic real, atualmente de 8,93% considerando o IPCA dos próximos 12 meses, segundo o boletim Focus do BC, tende, por tal juízo, estender a pauleira dos custos financeiros, não a aliviar.
Outra contradição é que o investimento privado de longo prazo visado corretamente pelo governo virá majoritariamente de grandes empresas e bancos, cujo caixa cobre seus gastos correntes e gera resultados para aplicar. Parte deste resultado será desfeita pelas regras tributárias que a Receita orienta o governo a pedir ao Congresso para restringir ou abolir. Receita financeira, muitos esquecem, se acresce à receita operacional dos negócios, e em tempos mornos tende a excedê-la.
Mudanças de política econômica provocam estes descompassos, e isso é do jogo. Só que precisa de muita negociação, como Joe Biden em meio à extrema polarização política dos EUA conseguiu dos republicanos, que lhe movem uma oposição feroz, para aprovar seus programas industriais e de infraestrutura. O chamado ‘bem-bolado” com o empresariado, mesmo com os que combateram Bolsonaro, não aconteceu, ao menos ainda.
Nem se atentou também que a maioria de centro, à direita e esquerda, no Congresso, em especial na Câmara do presidente Arthur Lira (PP-AL), tem mais afinidade com o empresariado do qual o governo precisa minimamente para tocar seus projetos que com seduções fisiológicas.
Aggiornamento necessário
A boa nova é que a economia está desempenhando melhor do que se supunha no início do ano, a inflação dá sinais de distensão, ainda que em ritmo mais lento do que o arrocho monetário deveria entregar, as exportações de commodities chamam a atenção pela resiliência dado os percalços econômicos e geopolíticos da China, nosso maior cliente.
O que vai mal é a articulação entre os poderes, agora entre o STF e o Congresso e, de modo duradouro, entre o parlamento e o governo. Do lado institucional, falta a compreensão do que os “federalistas”, dos chamados “pais fundadores” dos EUA, encaminharam sobre como delimitar os espaços de cada poder constituinte. A palavra final, segundo eles, seria do parlamento, e à Corte suprema, interpretar as decisões dos representantes eleitos. Aqui, o parlamento se subalternizou diante da tradição de presidências imperiais, mas a tendência agora é outra.
Aceite-se ou não, há um impasse institucional, como quando o governo apela ao STF para mudar a sistemática dos precatórios que o governo e o Congresso passados deram um beiço, quando o certo seria voltar ao parlamento e negociar termos coerentes com esta outra bruaca fiscal.
É que negociações políticas se tornaram onerosas demais, pois falta às partes unidade programática e um plano de voo mínimo. É o caso da oneração de impostos, ainda que sobre ricos e maiores empresas. E há opção? Sim. Um aggiornamento da governança da economia visando o bem comum movido a investimentos e evitando dissídios que depois levarão a decisões que todos lamentarão. Conversando, as opções aparecem.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.
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Com a economia em bom momento, é hora de não inventar moda e confiar mais no capital privado
Como se faz o caminho
Já passa da hora uma conversa séria entre a sociedade e os poderes eleitos e o melhor momento é quando os indicadores vitais da economia estão melhores do que os pessimistas supunham, depois de uma eleição decidida a favor do presidente Lula por uma pequena margem de votos.
Com o desemprego caindo, apesar da profusão de empregos precários, o saldo positivo da balança comercial em nível recorde, embora graças à exportação de grãos, cuja contribuição para a arrecadação de impostos é baixa e emprega pouco, e a taxa de juro do Banco Central cedendo, o governo Lula deveria respirar aliviado. Mas segue pressionado por uma maioria de deputados, uma base de apoio ainda escassa no Senado e com o eleitorado tão polarizado quanto na época da eleição, e isso apesar da decadência política de Bolsonaro, inabilitado pelo TSE.
O governo assumiu com os juros já aumentados a 13,75% pelo BC devido às traquinagens da equipe passada para forçar a reeleição com jogadas populistas. Elas legaram um calote de R$ 150 bilhões dos precatórios e um rombo aos estados e municípios pela baixa forçada do ICMS sobre combustíveis e telefonia, mais outro rombo na lei orçamentária, com o aumento de R$ 400 para R$ 600 do então Auxílio Brasil, seguido do empréstimo consignado sobre tais valores entre o 1º e o 2º turno, implicando uma enorme inadimplência para a Caixa Econômica Federal.
O ano de 2023 tem sido a consequência mais do que o governo passado fez de mau, com aprovação do Congresso, do que o atual já teve tempo e condição de implantar. Aí está a origem da confusão. Em princípio, o governo eleito sempre herda as heranças boas e ruins do anterior, é do jogo democrático. Esquisito é a antiga maioria que deu guarida ao governo passado ditar os termos para continuar como base de apoio.
Lula tem tentado repetir a fórmula de seus dois mandatos anteriores, buscando aliciar com a liberação de emendas ao orçamento votado pelo Congresso e a distribuição parcimoniosa de ministérios e a direção de órgãos públicos aos partidos da antiga situação, vulgo centrão, bloco amorfo, teoricamente de centro e centro-direita e aberto a negócios.
Essa maioria, entre cerca de 180 deputados mais próximos e 190 da velha base representada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, ele já tem. Mas em termos, votação a votação, o que leva a que se avalie se essa metodologia não estaria mais complicando que ajudando.
Sem exercício de prudência
Dois pontos distorcem a cena parlamentar atual vis-à-vis a de 2003 a 2010, quando, apesar da maioria coesa, houve escândalos em série.
O preço para Bolsonaro ter liberdade para fazer o diabo na tentativa de se reeleger foi delegar a execução orçamentária ao centrão, além de permitir a criação do nebuloso “orçamento secreto” – verbas da lei orçamentária (LOA) dadas ao parlamentar para aplicação em sua região eleitoral sem prestar contas nem sequer constar como seu requerente.
O STF vetou tal liberalidade fiscal, que já havia sido acusada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), mas o centrão fincou pé. O governo eleito negociou, então, que metade do tal orçamento secreto seria incorporada às emendas individuais, ou seja, por parlamentar, e às de bancadas por estado, ambas com a liberação obrigatória. A outra metade foi direcionada a projetos de ministérios, com mediação do parlamentar da região contemplada. Só que, para não ter erro, o centrão quer seguir à frente deste naco.
Por cautela, até pelo receio do ocorrido no passado, Lula está mais fechado a tais pedidos. Isso demandaria do governo acionar menos o Congresso, especialmente pela política econômica, e conter os ímpetos dos ministérios petistas para não aparentar favorecimento à revelia dos neoaliados dos partidos de centro e centro-esquerda.
A prudência não foi considerada na proposta do novo regime fiscal aprovado pelo Congresso sem corte de gasto e com aumento de impostos, que exigem sanção parlamentar. E mais: para lhes dar razão, parte do governo passou a hostilizar o setor privado, cuja conexão política passa pelos partidos neoaliados da base governista.
Caminho se faz caminhando
Ao governo há alguns caminhos – e “caminho se faz caminhando”, conforme o grande poeta e dramaturgo espanhol homônimo deste escriba. Por ora, menos discrepante seria o governo alinhar com o Congresso apenas as pautas consensuais, como a reforma tributária, hoje da tributação sobre o consumo, aprovada na Câmara e tramitando no Senado, e a do IR, prometida para a sequência.
A agenda da produtividade, que é também da gestão pública arcaica e disfuncional neste tempo de dominância digital, faz sentido, agrada à maioria dos políticos e o empresariado e terá de acontecer. Se não a implantarmos, não haverá economia nem gestão que parem de pé. É muito mais ampla que a mera reforma administrativa que está na praça. Ela, a rigor, visa cortar salário de bagrinho e poupar a elite da burocracia.
Chamo de reforma da governança do Estado de alto a baixo, da União a estados e municípios, incluindo Judiciário e instâncias legislativas. Talvez seja a proposta mais agregadora, unindo pensadores da economia tão diversos como Armínio Fraga e André Lara Resende. Não dá é para pilotar um orçamento em que 80% da receita é desembolsada com previdência e folha de funcionários e o investimento público esteja limitado a 1% do PIB, como destaca Armínio. Deveria ser de 3% a 5%.
Com saúde pública, gastamos menos de 4% do PIB, quando deveria ser o dobro. Saúde e educação são gastos obrigatórios na LOA, tratados cada qual de forma separada. Mas com cada vez mais idosos que jovens e a população, segundo o presidente do IBGE, Márcio Pochmann, tendendo a diminuir a partir de 2030, ambas as contas deveriam ser consolidadas.
Resultado é o que importa
No fim, o sucesso do governo virá do resultado do bem-estar, função do bom desempenho da economia, hoje, com o déficit fiscal, sem chance de vir de estímulos por transferências de renda em programas como o Bolsa Família nem de facilitação de crédito, sobretudo diante dos níveis elevados de inadimplência. Como faz?
A resposta está nos próprios programas anunciados pelo governo, tipo PAC, de infraestrutura, modernização da Defesa e indústria da saúde. Em todos, a parte atribuída ao capital privado é acima de 70% sobre o que o governo se compromete com aportes da LOA e bancos estatais. É o setor privado, portanto, que pode destravar a encrenca, se tiver boa regulação, baixo risco jurídico e projetos executivos de excelência.
De quebra, diminui a demanda por decisões do Congresso, já inquieto com o governo ir ao STF pedir ajuste no pagamento de precatórios sem passar pela necessária decisão parlamentar. Um bom diálogo abre o caminho. E dispensa caneladas em empresas, bancos, agro, que sabem bem que retórica inflamada gera like em rede social, mas não voto. Nem resultado na última linha dos balanços perscrutados pelo Fisco.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.