“Crise dos dividendos” da Petrobras é sequela de divergências mal resolvidas no entorno de Lula

Direção embaçada

A confusão no alto comando do governo em torno do que apareceu na imprensa como “crise dos dividendos” da Petrobras está, como todas as outras, mal focada no que de fato aconteceu e acontece no QG do estado maior do presidente Lula. O modelo de governança é que está em causa, não a retenção do lucro da Petrobras para, com ele, bancar um naco dos investimentos da empresa. Isso é sadio.

Bancar atividades operacionais com a geração própria de caixa é o que se espera de boas administrações, sejam elas de governos ou de empresas. Trata-se do dinheiro mais barato que existe. O lucro é o saldo final da gestão bem-sucedida. No Brasil, a lei manda distribuir aos acionistas um valor mínimo depois do IR, não tudo.

A discussão surgiu quando a diretoria da Petrobras recebeu de seu acionista majoritário, ou seja, o Tesouro Nacional representado no conselho de administração da empresa pela maioria de seus membros, a ordem de reter um naco maior do que a expectativa dos acionistas privados, um leque de grandes fundos, quase todos estrangeiros.

A bolsa caiu, setores do mercado de papéis acusaram o governo de interferência política e colunistas correram a lembrar o escândalo do petrolão quando a Petrobras era a petroleira mais endividada do mundo, no governo Dilma. O time de Lula deveria evitar ruídos.

Tudo previsível, de modo que estranhas não foram as lamúrias do mercado e da oposição. Estranho foi ter vazado o que se falou numa reunião fechada convocada por Lula – obviamente, não por ele, que nada tinha a ganhar com isso, mas por um ou mais dos ministros e diretores da Petrobras presentes. Essa é a questão relevante.

O presidente quer que a Petrobras invista em grandes projetos, da exploração das reservas de petróleo à transição para uma empresa de energias renováveis. Tem ministros que apoiam essa orientação e outros que a enxergam como provedora de receitas extraordinárias para ajudar a ajustar o orçamento federal às despesas que só fazem crescer e a novos gastos que florescem como capim.

Esse descompasso tem gerado dissonâncias entre personagens que só poderiam agir convergentes com o presidente. O busílis está aí.

O recado de José Dirceu

Ou o ministério se adapta ao estilo de Lula, que se movimenta por impulso e valoriza seu instinto, ou o presidente terá que mudar os quadros-chaves ou se conformar com a perda de popularidade. Ela já está em queda, segundo as principais pesquisas, e isso apesar de a situação da economia não ser o motivo do desconforto eleitoral.

Duas questões se impõem. Uma diz respeito à governança da decisão e a outra ao autoengano da relativa normalidade da economia. Ela é decorrência da recuperação do emprego e da renda das famílias, mas não do investimento em novos projetos, que é a prioridade.

Reforçando recado do último artigo: transferência de controle de empresas ou de concessão de operador de ativos não corresponde, necessariamente, à expansão do PIB real, sobretudo da manufatura.

A alta direção de empresas e de governos é concentrada no líder, o que exige dos diretores (ou ministros) e da assessoria imediata grande capacidade de interlocução e clareza na exposição do que é função de decisão estratégica da chefia. Nos seus primeiros dois governos, Lula dispunha de ministros experientes dos primórdios do PT com os quais dialogava como iguais. Não havia agenda dupla.

Dispunha também de contatos privilegiados no empresariado e entre profissionais liberais da mais absoluta confiança para consultar e ouvir, sem censura nem receios, críticas ao que não funcionava.

E hoje, quem ele dispõe? Ao agradecer os presentes em sua festa de aniversário, comemorado esta semana em Brasília, José Dirceu, quadro histórico do PT, mandou um “recadão” ao discorrer sobre a solidão do poder: “Quem são nossos aliados na elite do Brasil, no empresariado do Brasil?” Boa pergunta para o presidente refletir.

Fim da era dos “monstros”

O fato é que o mundo está mudando empurrado por tecnologias que até dois a três anos atrás a maioria desconhecia a existência. Na política, o poder abrasivo das redes sociais vale mais que a fala empolada de político em palanque. Na geopolítica, os poderosos se atracam pelo domínio do que parecia incontestável ao Ocidente.

Na economia, governos, empresas e setores econômicos estão como a Kodak trinta anos atrás: tentando entender onde foi que errou, ao patentear o filme digital e licenciá-lo a fabricantes japoneses, para fazer um dinheirinho cobrando royalties pelo uso do que não explorou por inércia e soberba dos executivos. E perdeu tudo: de câmara fotográfica a filmes em papel revelados em lojinhas.

Devemos ficar atentos às transformações. Elas importam mais que Trump, Putin, o nacionalismo cristão e outras aberrações típicas de um passado que se foi e o novo ainda não nasceu (conforme um dos pensamentos do filósofo italiano Antonio Gramsci, ao refletir na cadeia de Mussolini, onde morreu, sobre a loucura da Europa de pré-guerra. Ele escreveu em tom profético: “O velho mundo morre. O novo é lento para aparecer. E nesse claro-escuro surgem monstros”).

Na linha do tempo, estamos vivendo, ou saindo, a era dos “monstros”. Ajudará o processo a correção cíclica dos talvez erros do Fed, arrastando os demais bancos centrais, ao sacar os juros contra a inflação revivida pela quebra das cadeias produtivas devido à pandemia. O tempo para isso deverá ser até o fim de 2025, durante o qual os lucros estarão em risco em muitos setores.

E depois? É quando as disrupções tecnológicas vão amadurecer por volta de 2030. Falamos de anos, não de décadas.

A fila das próximas Kodak

O país tem pouco tempo para se adaptar ao que terá valor logo ali na frente. Exemplos? A energia eólica e solar farta e com custo em queda no Nordeste serve não para produzir hidrogênio, de uso mais complicado, exceto como anexo de indústrias altamente poluentes.

Faz mais sentido ofertar essa energia limpa para desenvolvedores de inteligência artificial generativa (IAG) e data centers que são consumidores gulosos de eletricidade. Estudo do Morgan Stanley põe por baixo a necessidade de expansão anual da oferta de energia à taxa de 70% além do crescimento projetado por razões ambientais.

Em qualquer caminho adiante a digitalização massiva é obrigação e não opção e ela se conecta com as oportunidades que unem a geração limpa de energia aos veículos movidos a bateria, tendência em alta que já atropelou motores híbridos e os biocombustíveis. Montadoras de ontem serão as próximas Kodak. Governos e empresas desatentos a tais avanços vão passar maus bocados. Muitos e muitas já passam…

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

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