Sem projeto de longo prazo, mercado age igual em todo o mundo: está sempre pronto para se mandar

O “aggiornamento” do pacto econômico e social que fez do pós-guerra aos anos 1970 o Brasil ter a economia de maior crescimento do mundo é a bola quicando na frente do gol sem goleiro

Soberba dos traders

Com um olho nos mercados externos, onde a alta dos juros dos bancos centrais contra uma inflação mais de oferta obstruída que de consumo em chamas vai minando a saúde sempre delicada do sistema bancário, e outro sobre o governo Lula, para obrigá-lo a impor austeridade fiscal e monetária sem que haja risco iminente de descontrole de preços e de endividamento público, os gestores de dinheiro rasgaram a fantasia.

Conhecidos como farialimers ou traders de títulos, 82 executivos de fundos de ações e de papéis de dívida pública e privada ouvidos pelo instituto de pesquisas Quaest sobre a condução da economia pelo atual governo chutaram o balde – indiferentes a que a prioridade tem sido a de pôr ordem na balburdia fiscal legada por Bolsonaro. Lula e seus ministros ainda buscam organizar-se antes de imprimir suas digitais.

Vistas sem contexto, a pesquisa valida o sentimento do presidente de que faça o que fizer e ninguém da equipe econômica será tratado como um dos seus pelos integrantes do mercado financeiro (segmento não bem representado pelos bancos tradicionais, mais pragmáticos nas relações com o poder). Exemplos: 98% disseram que a política econômica está na direção errada; 95% afirmaram que o Banco Central acertou ao manter a Selic em 13,75%. É evidente a força da ideologia libertária, vertente darwinista do neoliberalismo, entre as casas de gestão de dinheiro.

Mais evidências: para 62% da população, a economia deve melhorar com Lula, mas apenas 6% do mercado financeiro têm a mesma expectativa. Só que não se trata de diferença de opinião. Os financistas ouvidos pela Quaest coincidem com os da pesquisa semanal Focus do BC, e são também os consultados na véspera de cada reunião do Copom. Suas opiniões são incorporadas aos modelos que embasam as decisões do BC sobre a Selic.

Mas, olhando-se com frieza o que está em jogo, fato é que o governo pouco fez até agora para se contrapor à hegemonia financista sobre a condução da macroeconomia. Não atualizou a agenda da economia, como se faz nos EUA. Lá, o Partido Republicano de Trump e o Democrata de Biden alçaram o desenvolvimento como estratégia nacional, repudiando em acordo com o grande capital o neoliberalismo dos últimos 40 anos.

Mercado financeiro sem plano de voo de longo prazo age igual em todo o mundo: no curtíssimo prazo, sempre pronto para se mandar para fora. Essa é a lógica ainda não considerada por Lula e seus aliados.

Bola quicando na área

O “aggiornamento” do pacto econômico e social que fez do pós-guerra aos anos 1970 o Brasil ter a economia de maior crescimento do mundo é a bola quicando na frente do gol sem goleiro à espera de quem a bata.

A antiga agenda de reformas essenciais, mas sem capacidade de mudar a dinâmica da economia no curto prazo, continua em curso. Pegue-se a tributária: ela é necessária para mudar as expectativas, mas, com boa vontade, só produzirá efeitos a partir de 2025, se aprovada este ano.

A reforma administrativa tem igual contradição entre o que propõe e o resultado. Em tese, pretende elevar a qualidade da gestão pública. Na prática, visa rebaixar a despesa, implicando sequelas, já que as categorias mais fortes do Estado, como do Judiciário, tendem a passar ao largo, fazendo o peso da reforma recair sobre os bagrinhos. Eles são os que atendem a população mais dependente de serviços públicos.

Para ambas as demandas o país tem em mãos desde pelo menos a eleição de 2018 o programa de digitalização maciça dos cadastros das pessoas físicas e jurídicas, acompanhadas de melhoria de processos de gestão dos bancos de dados públicos e privados e de suas operações. Não há, por exemplo, restrição tecnológica para cobrar imposto em tempo real, tal como nas transferências de dinheiro e pagamentos por meio do Pix.

Promotor do Pix, o BC também está com o real digital, o e-real, em fase de ajustes. As duas tecnologias, associadas ao recolhimento das cédulas de R$ 100 e R$ 200 (lançada em julho de 2020 para gáudio dos contraventores), têm poder de asfixiar a economia informal, que não é pequena. O IPEA a estima, segundo estudo do ano passado, entre 16,6% e 37% do PIB. Que seja 10%, ainda relevante frente à carga tributária de 34% do PIB. Falamos de um potencial de arrecadação de mais de R$ 1 trilhão, garantindo uma reforma tributária com corte de alíquotas.

Índia indica o caminho

Ideias inovadoras estão em curso em vários países. A digitalização transformadora foi implantada na Índia a partir de 2009 com o Aadhaar – número de identidade exclusivo de 12 dígitos e dados biométricos. É semelhante ao CPF, cuja biometria foi finalizada pelo TSE nas últimas eleições. O que falta cadastrar pode ser concluído em pouco tempo.

Na Índia, tais avanços não visaram, como visam aqui, só a eficiência dos serviços prestados, com maior controle e menor custo. Elas foram plataforma para mudanças transformacionais que puseram a economia da Índia, ainda das mais atrasadas no mundo mas já tendendo ao terceiro lugar depois de EUA e China, entre as impulsionadoras de inovações.

O salto da Índia, democracia federativa como nós, é expressivo. Em termos de valor adicionado da manufatura, medido em dólar corrente pelo Banco Mundial, saltou de US$ 66,2 bilhões em 1998 para US$ 443 bilhões (2,8% do total indústria de transformação no mundo). No mesmo período, fomos de US$ 105 bilhões a US$ 155 bilhões (0,96% do total).

A indústria da Índia cresceu 6,7 vezes em 23 anos; a nossa, 1,5 vez. Como proporção da manufatura dos EUA, recuamos de 7,3% para 6,2%, e a Índia progrediu de 4,6% a 17,7%. Avanços dessa grandeza pedem visão, coesão política independentemente de ideologias e forte integração entre políticas públicas e iniciativas privadas.

A síntese desse programa transformador, que esteve em mãos da gestão passada e não foi acolhido, envolve arrecadação tributária em tempo real, consolidação e gestão única dos cadastros de pessoas (não só os sociais), simplificação e desburocratização e moeda digital.

Como resetar o passado

Sem programa de desenvolvimento transformador, o governo não será um dos polos de convergência da política. Nem o Congresso, como se vê em boas democracias parlamentaristas. Os programas estruturantes saem em regra ou do Executivo ou de think tanks ou de ambos. E onde não os há o curtoprazismo dos financistas domina a cena, como dominava nos EUA.

A agenda de reformas deve contemplar as urgências, uma não substitui a outra, e não há como o governo não a liderar, ainda que sem maioria parlamentar para aprová-la. Se devidamente convencido, o empresariado criará o ambiente que preencha o vazio político, como diz o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva.

Dialoga com tais anseios um plano que destaque o pobre como cidadão, não como ônus fiscal (Lula repete à exaustão tal ideia), desprovido de condições para se integrar com autonomia ao mercado de consumo e de crédito como sujeito soberano. Há décadas desprezamos a evidência de que somos o último grande mercado de consumo de massa não plenamente realizado no mundo. Indonésia e Índia vinham atrás e nos superaram.

Em suma: resetar programas armados para travar guerras do passado, substituídos pelo crescimento com inovação tecnológica e autonomia social. Rapidinho cairia em desuso a expressão “farialimers”.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

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