Catimba diplomática. Lula dribla entre EUA e China por bons acordos, obtendo o que ainda tateia na política doméstica

Se a clareza da política externa tivesse equivalência no ainda inexistente programa de revitalização industrial, a discussão enfadonha sobre “arcabouço” fiscal teria menos apelo, assim como o BC e a Selic mata-leão virariam notas de rodapé

Catimba diplomática

Catadores de pelo em ovo procuraram nas andanças e manifestações de Lula na China sinais de hostilidade aos EUA e alinhamento com o czar chinês Xi Jinping, especialmente na sua declaração contra o domínio do dólar no comércio e finanças internacionais e na visita à Huawei, fornecedora de 70% dos equipamentos de comunicações 5G no mundo.

É mais correto atribuir tais rompantes ao circunlóquio da linguagem da diplomacia, em geral pouca clara e feita de imagens, especialmente em meio à guerra fria, por ora comercial e tecnológica, entre EUA e China, agravada pelo apoio chinês à invasão à Ucrânia pela Rússia e a ameaça de retomar Taiwan, tratada por Pequim como província rebelde.

Este é o pano de fundo das relações do Brasil com as duas potências da nova ordem global pretendida pela China em oposição ao status quo da “pax americana” – um raro consenso da política nos EUA, que une os republicanos de Donald Trump aos democratas do presidente Joe Biden.

A deferência do governo Lula aos EUA se manifestou com a sua visita a Biden na Casa Branca semanas depois da posse e da habitual passagem por Buenos Aires, conforme o rito da diplomacia brasileira após a inauguração de cada governo. Pequim veio na sequência, mas já poderia rivalizar com os EUA a primazia diplomática tamanha a sua importância para as exportações brasileiras e os investimentos em infraestrutura.

Lula agradeceu as duras reprimendas do governo Biden à tentativa de subversão eleitoral pela campanha à reeleição de Jair Bolsonaro, mas esperava mais: que os EUA apoiassem o Brasil como pivô da geopolítica na América do Sul e fizessem um aporte generoso ao Fundo Amazônia, que Bolsonaro congelou ao abandonar a nossa prioridade ambiental.

A diplomacia chinesa explorou a falta de afagos dos EUA ao governo de um presidente que aprecia política externa e sabe jogar à esquerda e direita do campo, dando-lhe uma recepção com status de líder global e uma série de acordos de cooperação. É antítese do que acontecia.

Bolsonaro melindrou Biden, ao pôr sua relação com a extrema-direita trumpista à frente do país, e se afastou da China (que reagiu criando embaraços às exportações do agro). Lula fez mais pela agenda externa pautada pela economia em quatro meses que o governo passado em quatro anos. Isso vale mais que retórica inflamada dos discursos políticos.

De Washington a Pequim

Simbolicamente, as viagens de Lula reabrem o Brasil a bons negócios e oportunidades de investimentos, sobretudo em atividades dependentes de inovação tecnológica, capitalizadas por ele, mas com consequências positivas graças ao esforço empreendedor do empresariado moderno.

Ele vai adequando o discurso conforme a suposição do que o anfitrião quer ouvir. Em Pequim, disse que ninguém vai impedir o Brasil de ter negócios com o governo de Xi Jinping, o que nem precisaria declarar, foi só retórica. No documento conjunto, reiterou aderir “firmemente ao princípio de uma só China”, o que todos os países que reconhecem Pequim aceitam, inclusive os EUA, patronos da blindagem de Taiwan.

Não é bem a soberania de Taiwan que os aliados dos EUA na Ásia, como Japão, Coreia do Sul, Filipinas, Australia e até o comunista Vietnã, defendem, é o receio do expansionismo territorial e econômico chinês. Ele era velado antes de Jinping impor o nacionalismo como peça-chave do Partido Comunista da China, formado por uma burocracia confuciana e meritocrática mais que marxista, mantido por razões históricas.

Lisboa, Madri e Mercosul

Lula conhece tais filigranas. Ele terá a oportunidade de voltar a se mostrar pragmático nas duas próximas viagens – a Portugal, dias 24 e 25, e à Espanha, do primeiro-ministro Pedro Sánchez, do PSOE, aliado histórico do PT, dia 26. Sánchez assumirá a presidência rotativa da União Europeia no segundo semestre, numa nova chance para destravar o enrolado acordo de livre comércio da Europa com o Mercosul.

O protecionismo agrícola, sobretudo da França, disfarçado por vetos ambientais, entrava a conclusão. O tratado importa mais à Argentina à beira da insolvência, mas continua relevante em termos geopolíticos.  Para Sánchez, a América Latina pode ajudar a Europa a reduzir a sua dependência de commodities da Rússia e conter a influência da China.

Na verdade, se a clareza da política externa tivesse equivalência no ainda inexistente programa de revitalização industrial, certamente a discussão enfadonha sobre “arcabouço” fiscal teria menos apelo, assim como o Banco Central e a Selic mata-leão virariam notas de rodapé.

Com a assessoria do ministro Fernando Haddad e do ex-chanceler Celso Amorim, autor da política multilateralista do governo, Lula de certa forma resvalou no que deveria compor a estratégia industrial com foco no século 21 ao criticar a predominância do dólar. Também o fez indo à Huawei em Shangai, sancionada pelos EUA, Inglaterra, Japão, Canadá, entre outros, por suspeita de servir à espionagem da China.

Mitos do fundamentalismo

A Huawei é o que seria a Cisco, se a gigante de equipamentos de rede de dados e de celular dos EUA não perdesse sua liderança ao priorizar a recompra de ações e a distribuição de lucros em detrimento do que a tornou vulnerável aos concorrentes: investimentos em tecnologia.

O caminho da Huawei estava e está aberto a ser replicado no Brasil. Ela ocupou o espaço da Cisco depois de 2001, quando a empresa trocou a inovação pela financeirização (como outras dos EUA). Entre 2001 e 2022, a Cisco aplicou US$ 152,3 bilhões, 95% do lucro no período, em recompra de ações para elevar seu preço e desperdiçou mais US$ 55,5 bilhões em dividendos, um adicional de 35% do lucro – dinheiros que, investidos no negócio, tornariam mais difícil a ascensão da Huawei.

A força tanto de valor quanto de demanda global do dólar explica um bom pedaço dessa história. Vários governos dos EUA se comprometeram com o dólar forte, barateando importações, que o fundamentalismo de mercado destacou como benefício do consumidor americano, mas à custa de tornar gravosas a produção local, as exportações e o emprego.

Isso vem mudando nos EUA. Biden ressuscitou a política industrial, que a oposição conservadora quer aprofundar com barreiras tarifarias, acordos bilaterais e investimento público. Mais fácil seria deixar a moeda depreciar. Dólar forte, como diz Michael Pettis, professor da Universidade de Pequim, um franco-americano que conhece bem o Brasil, só serve ao poder geopolítico dos EUA e a financistas de Wall Street.

Produtores e trabalhadores dos EUA, diz, são prejudicados, “e é por isso que muitos acham a redução do papel do dólar tão assustadora”. A sua substituição pelo renminbi, conforme acordo fechado por Lula com a China, é duvidoso. Pettis diz que a China não abriria o seu mercado financeiro e aceitaria décadas de déficit comercial, como aconteceu com os EUA, para disputar a atual hegemonia do dólar.

Ele respondeu à questão de Lula sobre porque os países têm de basear o comércio no dólar: “É muito mais uma pergunta de político, de quem desconhece o balanço de pagamentos global”. A atenção à indústria é a condição para o país se reconciliar com o progresso, só que não tem atalho. E exige visão aberta e combate à ortodoxia dos rendidos.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas

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