Assimetria de poderes entre Congresso e Executivo é uma anomalia que ganha força e exige do STF atuação também excepcional ao ser acionado para dirimir conflitos
Cada macaco no seu galho
A percepção de bagunça em Brasília com o fim do mandato de Bolsonaro e do Congresso e início de outro ciclo de quatro anos dos governantes eleitos tem razões objetivas e antigas. Sem vencê-las, será difícil romper o retrocesso ao subdesenvolvimento estrutural que nos definha.
A frustração do presidente tosco, com instinto autocrático desde seu passado de tenente do Exército e inteligência emocional minúscula, é coadjuvante na confusão política da sucessão, apesar de ter posto em risco a ordem pública e a sanidade de seus apoiadores golpistas, sob o incentivo de empresários reacionários e de corporações fardadas.
Os atores principais em cena são Lula e a direção do Congresso, em especial das lideranças políticas agrupadas em torno do presidente da Câmara, Arthur Lira, reeleito deputado e candidato a manter o comando da Casa na nova legislatura a ser instalada em 1º de fevereiro. O que eles disputam é o exercício do poder decisório: com viés parlamentar, conquistado pelo Congresso ao fazer de Bolsonaro cúmplice do chamado orçamento secreto, ou com viés do governo, seguindo a Constituição.
A autorização do Congresso para o novo Executivo dispor de R$ 145 bilhões acima do teto de despesas da lei orçamentária (LOA) de 2023 é essencial para Lula poder contornar o colapso do setor público, o que inclui o Bolsa Família, devido à gastança promovida por Bolsonaro e seus aliados este ano com ações populistas para tentar se reeleger.
Ou a Câmara acompanha o Senado e amplia o déficit da LOA de 2023 ou Lula apelará a uma medida provisória para que o Tesouro possa emitir um crédito extraordinário da ordem de R$ 80 bilhões – suficiente para manter o adicional de R$ 200 do Bolsa Família e alguns outros gastos.
Ambos se frustrarão neste caso. Lula tomaria posse sem dinheiro para nada mais. Lira, sem os R$ 19,5 bilhões do orçamento secreto, ou RP-9 no jargão contábil, cuja constitucionalidade está sendo julgada pelo STF, ficaria diminuído para se reeleger. A incerteza sobre o que fará o STF o levou a adiar para terça-feira a votação da chamada PEC da Transição, para ajustar seus valores se preciso, e da LOA em seguida.
Fica evidente que o imbróglio não é de gastança, ao contrário do que dizem os ortodoxos, é da impossibilidade de coexistirem dois chefes de governo, ou três, considerando-se o STF como juiz da harmonia como manda a Constituição. Ela diz sem rodeios: cada macaco no seu galho.
Protagonismo crescente
A verdade é que nem o centrão está contra a PEC que repõe um mínimo de racionalidade ao funcionamento do setor público federal nem o novo governo – sem maioria parlamentar, como todos os eleitos desde o fim da ditadura militar – poderia governar dispensando os votos da velha e próxima base parlamentar do centrão, pragmático por definição.
Ficou assim: o Congresso aprovou Projeto de Resolução na sexta-feira por amplíssima maioria na Câmara e Senado regulamentando as emendas RP-9 e lhe dando alguma transparência, na expectativa de que atenda aos reclamos do STF na votação sobre sua constitucionalidade. Clareza a ponto de explicitar a parte que cabe à direção das duas Casas. Lira teria sob seu controle direto cerca de R$ 1,4 bilhão de tais emendas.
Se as partes, entre centrão, novo governo e STF estiverem de acordo, o jogo continua. Remove-se o primeiro obstáculo, mas não as pressões que modelam o presidencialismo de coalizão no qual o Congresso assume um protagonismo crescente desde a queda de Dilma Rousseff.
Lira e os seus também querem postos no governo Lula. Com Bolsonaro, detiveram até a chefia da Casa Civil, com o senador Ciro Nogueira, do mesmo Partido Progressistas (ou PP) de Lira, chegando a ter a palavra final sobre os dinheiros orçamentários pagos pelo Tesouro Nacional.
Falta centro, não centrão
A assimetria de poderes entre Congresso e Executivo é uma anomalia que ganha força desde o governo Temer e exige do STF atuação também excepcional ao ser acionado para dirimir conflitos de jurisdição que não deveriam existir, se a Constituição fosse seguida comme il faut.
Chegamos a tanto pela legislação decrépita dos partidos, estimulados a se fracionar entre dezenas de agremiações, algumas literalmente com dono, devido ao acesso a fundos eleitoral e partidário, além das tais emendas, que são um naco do orçamento federal rateado entre cada um dos parlamentares para custear investimentos em sua zona eleitoral.
A Constituição reconhece apenas as emendas individuais. Aos poucos surgiram as emendas de bancada por estados, as de comissões e, agora, as de relator da lei orçamentária, base do orçamento secreto ou RP-9 (que por ironia significa Resultado Primário, ou saldo entre receitas e despesas do orçamento notoriamente deficitário). É do relator, mas proforma. Os presidentes das Casas legislativas as controlam de fato.
Resumindo: o eleitor elege o presidente da República, cujo poder da caneta vem sendo esvaziado (e com Bolsonaro sua Bic era cenográfica), cabendo-lhe o ônus, além de forçado a ratear o bônus com o Congresso.
Como se resolve tal impasse, já que não é apropriado apelar ao STF a cada conflito? Com uma estrutura partidária que viabilize maiorias eleitorais com poucos partidos com linhas afins. Isso vai demorar. No curto prazo, a solução é Lula dar força a um bloco de centro, como o da terceira via na eleição presidencial, para fazer frente ao centrão perdulário do é-dando-que-se-recebe e à extrema-direita bolsonarista.
Juro arromba quarteirão
Normais em início de governo, composições políticas se resolvem com muita negociação, no que Lula tira de letra. Muito mais difíceis são os obstáculos colocados pelos agentes que operam os papéis de dívida pública, apelidados de “farialimers”. Aí o gogó funciona somente se o contador de “causos” for da confiança da turma, hoje bem mais arisca do que ele conheceu em seus dois governos anteriores. O que mudou?
Para começar, o Banco Central ganhou independência formal, embora continue submetido às diretrizes do Conselho Monetário Nacional. Os usos e costume do chamado “mercado” também foram alargados com Paulo Guedes, ele mesmo um trade, no Ministério da Economia. E enfim, para sermos breves, Lula vai assumir com a economia já sob o peso da taxa Selic de 13,75% ao ano – 7% a 8% real, juro arromba quarteirão para qualquer programa de revitalização da indústria e do investimento.
Conforme a cartilha da economia mainstream observada pelo BC e pelo mercado financeiro, inflação, resultado do orçamento federal, nível da dívida em proporção do PIB influenciam a trajetória dos juros e da taxa cambial, ambas condicionadas pela gestão desses indicadores. Tem outras maneiras, mas não há, por ora, condições para praticá-las.
Lula não escolheu a via mais fácil para desfazer o azedume dos tais farialimers nem é recomendável dobrar a aposta. Com a boa-vontade do BC e um plano que acomode os gastos acima do teto em 2023 dentro das programações monetária e fiscal, poderá aquietar os mercados e ganhar tempo tal como negocia com o Congresso. E vai ajustando aos poucos…
*Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas