Just business
“A economia do Brasil está arrasando”, cravou na última quinta-feira o editor de América Latina da Bloomberg, agência de notícias em tempo real influente no mercado financeiro global, Juan Pablo Spinetto. Com um semestre de atraso, a Standard & Poor’s, que monitora o risco de títulos de países e empresas, elevou de estável para positiva a nota de crédito do Brasil, desencadeando uma onda de otimismo no mercado.
A rigor, o comunicado da S&P foi evasivo sobre quando poderia elevar para o chamado “bom para investimento” a nota do Brasil. Mas, devido a seus antecedentes, traders do mercado financeiro viram algo mais.
S&P foi a primeira agência internacional de rating a graduar o país com o “grau de investimento”, em 2008, fazendo gorar a articulação do PT para o presidente Lula trocar Henrique Meirelles pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo na direção do Banco Central. E foi a primeira a retirar a certificação – observada pelos investidores institucionais -, em 2015. As notas dessas agências são técnicas, ma non troppo.
Explica o contorcionismo de Spinetto ao validar a mudança súbita de humor. “O Brasil poderia estar no início de um ciclo virtuoso”, ele escreveu. “Há condições internacionais favoráveis, inflação e taxas de juros em retrocesso e um entorno político mais construtivo.”
Tom Jobim certa vez disse que “o Brasil não é para principiantes”, variante da pilhéria do ex-czar da economia dos governos militares e ex-deputado Delfim Netto: “Em Brasília, o mais bobo é suplente”.
Vá lá que a nota de crédito do Brasil estava estranha, já que não há o risco fiscal repetido pelos ortodoxos, nem o de Lula se inflamar e mandar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, cuspir dinheiro usando o crédito do Tesouro Nacional. Então, houve o que com a economia?
Houve a aceitação de que não há nada a temer desse governo quanto à segurança do capital e a solvência fiscal, a inflação desinchou, já passa da hora o Banco Central picotar a Selic, e, com risco político em toda parte, a baciada de dinheiro ocioso criado pelo laxismo das economias ricas na pandemia vaga pelo mundo buscando pechinchas antes que o aumento dos juros nos EUA e na Europa estrague a festa. Just business, como diz o sicário do capo Corleone em O Poderoso Chefão.
Fé nos freios e contrapesos
A configuração política do Congresso, associada ao perfil fiscalista de Haddad, que conseguiu o investment grade da agência Fitch para São Paulo quando foi prefeito, agrada aos que defendem as reformas de viés liberal, iniciadas no governo Temer e relaxadas com Bolsonaro.
A nota do editor da Bloomberg sintetiza este sentimento. Embora Lula “pareça menos paciente e mais dogmático em seu terceiro mandato que no primeiro, as tendências de esquerda do presidente são temperadas por um Congresso de centro-direita”, escreveu Spinetto. Ele calça seu argumento com declaração do presidente da Câmara, Arthur Lira, a quem chama de “poderoso”: “O Congresso é reformador, liberal, conservador e tem posicionamentos próprios”. É a teoria dos freios e contrapesos.
A leitura do mercado, segundo a nota da Bloomberg, é que Lula terá que se envolver com algum tipo de barganha com o Congresso, o que vai empoderar Lira e seu grupo político, que se estende ao Senado, para além da pressão pela liberação incondicional do dinheiro das emendas e o comando de porções do governo com caixa e visibilidade eleitoral.
O risco de o caixa público se descontrolar, como se desgovernou com a sem-cerimônia de Bolsonaro, seriam mitigados, conforme esse juízo, pelo novo regime fiscal, o tal “arcabouço”, e a crença de que Haddad personificaria o papel de moderação de Antonio Palocci no Lula-1.
É uma aposta razoável. Só que, abstraindo a retórica de Lula, assim já era desde o início do ano. Não fossem a desconfiança dos traders e do BC de Campos Neto e o dólar abaixo de R$ 5, o flerte da bolsa com os 130 mil pontos e a Selic decente já seriam realidades, ajudando a aliviar a dor dos milhões de endividados, entre pessoas e empresas.
Quem move a roda do mercado
A bipolaridade do chamado “capitalismo de gestores de ativos”, forma avançada da propriedade financeira e empresarial, como a definiu Benjamin Braun, do Max Planck Institute, influencia mais os fluxos financeiros que as questões ideológicas. Só no Brasil o ambiente de polarização política fritou os miolos de muita gente do mercado.
Portentos como BlackRock, que administra mais de US$ 10 trilhões de clientes em seus fundos e, com os rivais Vanguard e State Street, todos dos EUA, controla, em média, 22% das ações de todas as empresas listadas no índice S&P 500, opera na China sem torcer o nariz. Normal é o governante progressista estender tapete vermelho a tais capitais.
Deles é que flui o grosso do capital que viabiliza as concessões de ativos estatais, as parcerias público-privadas (PPP), privatizações e a maioria das emissões de ações das empresas que operam no Brasil, sejam privadas nacionais, estrangeiras ou do Estado.
Estão para o investimento de longo prazo e, desde que bem modelados, para os programas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e os negócios de risco de novas empresas, vulgo startups, como, no passado, esteve o BNDES para a indústria nascente e a infraestrutura. Hoje, os papeis de cada um são complementares, tal como os incentivos para direcionar os fundos para setores prioritários ainda pouco atrativos no país.
Se o governo Lula tiver essa leitura, o crescimento econômico, posto pela nota da S&P como condição necessária para consolidar o programa fiscal aprovado pela Câmara e tramitando no Senado, poderá acontecer. Se, por outro lado, tomar o ajuste como peça única de uma estratégia de desenvolvimento, a economia continuará estagnada como se encontra há uma década – e no caso da manufatura desde o fim dos anos 1980.
Grau de investimento notável
Quando a questão acima estiver respondida de modo satisfatório, aí se poderá dizer que “a economia do Brasil está arrasando”. Não está, como se viu no dia seguinte à boa-nova da S&P. O IBGE anunciou a retração do setor de serviços em abril, -1,6% sobre março, uma queda maior do que se previa. A retração pegou 26 dos 27 estados, incomum, segundo o IBGE. Na véspera, o dado do varejo também veio frouxo.
A atividade econômica está fraca e mesmo que cresça ao redor de 2% no ano ou algo mais terá sido pelo dinamismo exportador do agro, um setor que representa apenas 7% do PIB, emprega pouco e recolhe menos impostos do que poderia. Sem taxa de investimento acima de 21% do PIB ao longo de mais de uma década e um grande esforço de produtividade, a economia crescerá devagar, 1,5% a 1,7% de média anual, muito pouco para superar a longa tendência de estagnação. O que e como mudar?
Primeiro, compreender que políticas fiscal e monetária são partes e não a política econômica que viabiliza a estratégia que cada país se autoimpõe por meio de seus representantes eleitos.
É a política econômica plena, multipartidária, que movimenta o país e atende seus múltiplos interesses. Sem isso, resta o vazio, como o fundamentalismo do mercado condenara os EUA. O vazio pespega também governos de esquerda que negligenciam o progresso, que não se faz com um amontoado de obras. Faz-se com a dinâmica de cada tempo – hoje, o digital, a inteligência artificial, o carro elétrico, a produção sem carbono, a biomedicina etc. Aí está o grau de investimento notável.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas