Reforma tributária será um grande feito da política, se não aumentar a carga e evitar iniquidades

Que não decepcionem

A mais relevante reforma desta legislatura e do governo saiu, enfim, do papel, e começa para valer a discussão sobre a maior atualização tributária desde a passagem do Imposto sobre Vendas e Consignações, o IVC, em 1965, para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias, ICM e mais adiante ICMS, acrescido do S de Serviços. Nenhuma mudança foi fácil nem perfeita. A de agora também não a será. Mas vai acontecer.
A atualização é necessária. O sistema tributário virou uma bagunça, tantas são as exceções, as bases tributáveis sujeitas a um cipoal de tributos, regimes especiais abrindo a porteira para macetes, alguns escandalosos, desfalcando a arrecadação em algo como R$ 600 bilhões ao ano, implicando pesado ônus para o contribuinte, responsável pelo pagamento da última milha do ciclo produtivo, e sugando condições de competividade das empresas. É um sistema fim de linha, literalmente.
Meses atrás, um industrial brasileiro desistiu de fazer outra fábrica no país, para atender o mercado doméstico e a América Latina, devido ao custo tributário direto de 33% sobre sua receita bruta. Foi para o México, onde o ônus é de 13%, além de outras facilidades.
Assim morrem as nações: esvaziadas por decisões pactuadas pelas suas próprias elites eleitas e empresariais – o caso do sistema tributário que a Câmara vai tratar com duas décadas de atraso, e depois o Senado, se os deputados aprovarem. Por ser emenda à Constituição, não passa pelo presidente da República. O próprio Congresso é quem a promulga.
A tributação é tão grave, que, por maiores as concessões para chegar aos votos (pelo menos 308 deputados e 49 senadores, em duas votações) para aprovar a emenda constitucional, é melhor fazê-la que perder a oportunidade de transformar a maior causa da estagnação da economia e da mobilidade social. Espera-se maturidade e sensatez do legislador.
O tema é árido. Deixarei para analisar na fase de votação os pontos mais transformadores. Trata-se, nesta etapa, da fusão do ICMS e ISS, dos estados e municípios, substituídos pelo IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, e, na área federal, o IPI, PIS e Confins darão lugar à CBS, Contribuição sobre Bens e Serviços, CBS. Ambos, IBS e CBS, surgem tal como o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) consagrado no mundo. Se aprovado o IBS/CBS, em até 180 dias o governo envia a reforma do IR.

Redenção da política

A reforma seriada da tributação é a chance de a política se redimir, anistiando-se da percepção negativa junto aos eleitores até por ser uma iniciativa constitucional do Congresso e não do Executivo. Ainda assim, o governo tem papel relevante, tanto por se empenhar pela sua aprovação, como por ter recrutado o economista Bernard Appy para ser seu pivô. Sem ser tributarista, Appy se tornou referência no tema.
Como secretário do Ministério da Fazenda no primeiro governo Lula, Appy fez o meio de campo com técnicos e empresários mobilizados pelo ministro Antonio Palocci no think tank formado para propor projetos. Entre eles, estavam o da reforma do INSS, em seguida à da previdência do funcionalismo feita no início do governo, e a tributária, além das de desburocratização, da lei do petróleo, das debêntures etc.
O escândalo do mensalão travou o ímpeto reformista no Lula-2, parte pela aproximação com os sindicatos de funcionários, que nunca tiveram afinidade com o sindicalismo chão de fábrica que originou o PT. Faço o registro de que foi assim que associações de juízes e procuradores se fortaleceram, permitindo à sua franja mais conservadora e hostil aos políticos em geral plantar as raízes da Lava Jato.
As chamadas reformas estruturantes renasceram no governo Temer com o semipresidencialismo tocado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Alinhado ao presidente Michel Temer, Maia pautou duas prioridades: as emendas constitucionais da previdência geral e depois a tributária.
A equipe econômica de Temer preferiu consumir energia com o teto do gasto, em vez da previdência, cujo ritmo de crescimento, se ajustado em conjunto com a tributária, dispensaria o mecanismo que asfixiou os serviços essenciais, como saúde e educação, e o investimento público.

A bola está com Lira

A verdade é que as duas reformas tinham votos na Câmara liderada por Maia e no Senado, com Daniel Alcolumbre à frente, para passarem, não fosse a gravação de Temer pelo empresário Joesley Batista. O governo quase caiu, a burocracia sorriu, pois antirreformista, e as reformas, como a PEC 45 coordenada por Appy, com direção de Maia e relatoria do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), o mesmo atual, perdeu o momento.
A da previdência só veio a ser aprovada em 2019, com a relutância de Paulo Guedes, que queria criar fundos privados de aposentadoria, e de Bolsonaro, que só se aplicou para blindar militares e policiais. Deu-se o mesmo com a tributária: Guedes não quis prestigiar o Congresso – e o que ele propôs o Senado engavetou. Arthur Lira, sucessor de Maia, sem estímulo do governo, arquivou a reforma, a mesmo que ele relançou com alguns ajustes, mantendo o deputado Aguinaldo como relator.
Lira se reelegeu para comandar a Câmara comprometido com a reforma da tributação dual do consumo e em tourear governadores e prefeitos receosos de perderem receita e investimentos. A engenharia federativa e dos setores econômicos refratários, como agro e serviços, não está finalizada, mas diminuiu o mal-estar.
No cronograma de Lira, o substitutivo da PEC 45 vai a voto em julho e segue para o Senado, onde seu presidente, Rodrigo Pacheco, também está empenhado em apreciá-lo a partir de agosto. Se a Câmara cumprir o previsto, dificilmente o Senado criará embaraços.

Os lobbies e as omissões

Prudência, no entanto, se faz recomendável. A lista de bens sujeitos à tributação equivalente à metade da alíquota média do IBS ainda pode engordar. Adicione-se que nunca foram divulgadas as simulações sobre a alíquota de referência, assumida genericamente como de 25%.
Hoje está mais para 30%, conforme a lista de atividades beneficiadas já divulgada. Quanto maior a alíquota média da somatória do IBS com a CBS, menor o incentivo para a indústria de transformação recuperar as condições para voltar a investir, renovar-se e poder tanto abraçar as inovações tecnológicas quanto ser competitiva no mercado global. E há outro problema: a PEC trata as receitas de bancos como faturamento, o que vai escorrer para o spread e onerar ainda mais o crédito.
Outro ponto que requer atenção é que a proposta remete para uma lei complementar a definição da alíquota principal, assim como a base de incidência do proposto Imposto Seletivo sobre produtos prejudiciais à saúde, tipo cigarro e bebida, já pesadamente tributados. O que mais o legislador pretende incluir? O certo é que a lei complementar tramite em paralelo à do substitutivo da PEC 45 ou algo que evite surpresas.
Tais ponderações não põem em risco a necessidade da reforma. São só alertas sobre os lobbies que querem manter o status quo desse sistema inepto, iníquo e antiquado, o que também levanta a questão do motivo de a proposta não prever a cobrança do crédito e débito tributário no ato da transação na linha do PIX. Ou seja: com compensação imediata.
A longuíssima transição para o início dos novos IVA, oito anos, não só deve ser mais discutido se precisa ser tudo isso, mas também torna estranha a falta de previsão da arrecadação digital. A expectativa é que a disposição do presidente da Câmara em oferecer um texto moderno e justo considere tais preocupações e inaugure um tempo promissor.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas

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