Política em evolução
Embora de modo confuso, atritado, mal explicado, o fato é que muita coisa mudou na condução da política, com resultados promissores para a conjuntura econômica e social. A passagem da reforma tributária na Câmara, depois de duas décadas de discussão, foi um marco considerado inalcançável, e tudo indica que ela também será aprovada no Senado.
Tecnicamente complexa, a proposta, que caberá ao Congresso promulgar sem interferência do governo, foi concebida por técnicos não ligados às instâncias públicas devido ao antigo desinteresse da Receita e dos próprios governantes. Talvez não vissem dividendos eleitorais neste tema árido e polêmico, além de mudá-lo ser prerrogativa do Congresso.
A reforma dos impostos sobre o consumo começou a tramitar na Câmara em 2019 por iniciativa de seu então presidente, Rodrigo Maia, sob a forma da proposta de emenda constitucional 45, a PEC-45, e ressurgiu este ano pelo seu sucessor, Arthur Lira – ambos do campo de partidos de centro-direita, Maia no Dem, hoje União Brasil e fora da política, e Lira, do PP, núcleo duro do chamado centrão.
Ao se manter distante das pressões e dos lobbies ou para tumultuar a proposta ou para moldá-la a seu favor, o presidente Lula enfraqueceu a oposição bolsonarista a tudo que leve a marca do PT. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve espaço para circular nos bastidores da Câmara, graças, sobretudo, à boa relação com Lira e com o relator da PEC, deputado Aguinaldo Ribeiro, também do PP.
Não há rusgas também entre Haddad e Rodrigo Pacheco, PSD, presidente do Senado, e o senador Eduardo Braga, MDB, relator nesta fase da PEC. Pouco compreendido é que tal relacionamento sem subordinação entre os poderes tende a ser o novo normal da política, em que o presidente da República terá que se postar mais como executivo-chefe do governo que como líder de coalizão parlamentar. Seria se a tivesse organicamente, o que nenhum presidente eleito conseguiu desde a redemocratização.
Antes de as emendas à lei orçamentária se tornarem obrigatórias, no governo Temer, o parlamentar dependia do presidente para poder enviar recursos a suas regiões. Isso acabou, apesar de o noticiário falar de “compra” de deputado e senador com liberação de emendas à véspera de votações relevantes. Hoje, para ter voto no Congresso, o governo tem de dividir a gestão com partidos em geral de centro-direita, mas isso também está em evolução e tenderá a ser a grande novidade até 2026.
Parlamento com caneta
A discussão tributária pôs os deputados, e agora serão os senadores, em contato direto com as forças vivas da sociedade, de empresários a sindicalistas e organizações sociais. O governo só não foi isolado na discussão porque Haddad trouxe como secretário especial o economista Bernard Appy, coordenador da PEC 45, além de assessor da PEC 110, que tramitava no Senado. O texto aprovado na Câmara reúne as duas PECs.
Já havia sido assim na reforma da previdência, que sem Maia e David Alcolumbre, então presidente do Senado, não seria aprovada tamanha a inabilidade do ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, e a omissão do presidente. Ele só queria tirar os militares da reforma.
O Congresso se impôs a Bolsonaro e aos militares que lhe davam apoio ao trocar o risco de impeachment, em meio à sua desastrosa atuação na pandemia, pelo comando da execução da lei orçamentária, criando até o tal do “orçamento secreto” (emendas à margem de controles).
O STF glosou a validade desse tipo de emendas e Lula negociou reter metade do projetado para este ano na LOA e liberar outra metade como restos a pagar. É esse dinheiro que vem sendo liberado. A volta deste ardil está descartada, mas ficou claro que o risco à governabilidade impeliu o presidente a procurar ampliar sua base na Câmara, abrindo alguns ministérios aos blocos do centrão. É o que está em curso: uma mexida de cadeiras ministeriais. E resolve? Sim e não.
Centrão apoia ma non troppo
Sim, quando estiverem em cena propostas consensuais na economia tal como a tributária, o novo regime fiscal de controle do gasto público, vulgo “arcabouço”, e a volta do voto de desempate em favor do governo no conselho de contestações da Receita, o Carf (é como a Fazenda vê a chance de zerar o déficit do orçamento até 2025). Destas, falta só o arcabouço, deixado para agosto como sinal de dúvidas do centrão.
Não, quando ou se o governo quiser aprovar pautas mais progressistas da agenda de costumes, tipo ampliar o escopo do aborto, reaver a lista de empresas privatizadas na gestão passada, como a Eletrobras, ou ser muito rígido com a proposta de reforma do Imposto de Renda com a qual espera concluir a atualização completa do sistema tributário.
Entre as duas posições, também deverá manter influência a ortodoxia do mercado financeiro, sempre pondo as metas fiscais à frente tanto do desempenho da atividade econômica quanto dos indicadores sociais – e isso com o apadrinhamento pragmático das bancadas de centro, já que o cumprimento do plano fiscal de Haddad ratificado pelo Congresso dá aos políticos o meio de controlar os projetos mais eleitorais do PT.
Para ser diferente, Lula teria de ter inaugurado o governo com outra política econômica, como lhe fora sugerido antes da posse. Ao optar pelo convencionalismo monetário, que é o que faz o Banco Central de Campos Neto tão criticado por todos, inclusive por ele, e sem margem fiscal nem financeira para operar a despesa, o governo se estreitou.
Como donzela disputada
Os partidos que dominam a agenda de votações no Congresso não estão no voo ao acaso. O panorama na Câmara, por exemplo, mostra quase um perfeito equilíbrio minoritário entre as bancadas de esquerda e a de extrema-direita ainda caudatária de Bolsonaro com direitos políticos suspensos por oito anos. Uma anula a outra, aumentando o cacife dos que se declaram independentes ou com alinhamento crítico ao governo.
Curiosamente, porém, centro e centro-direita, embora majoritários no eleitorado, não dispõem de candidato natural para concorrer contra um nome indicado por Lula em 2026 ou ele próprio. Desde o fim do PFL, o principal partido conservador que emergiu da ditadura, acelerado pela morte precoce do deputado Luis Eduardo Magalhães, nome promissor para as eleições de 2002, houve uma dispersão dessa corrente, que continua forte nos estados, mas não conseguiu formar uma liderança nacional.
Os polos opostos da política, assim, tentam seduzir desde já apoios do maior número possível dos “centristas” – ou para a vaga aberta por Bolsonaro, como o governador Tarcísio de Freitas, ou para o campo de Lula. Isso é o que a imprensa põe em destaque dia sim, outro também.
Não se especula é sobre a disposição da centro-direita em se unir em torno de algum nome possivelmente ainda não visível. Isso vai crescer à medida que a economia continue presa ao longo viés de estagnação – algo que a reforma tributária, embora impactante, não tem o poder de romper, pois será implantada no tempo a partir de 2026.
Seria preciso algo mais rápido, intenso e transformador, sintonizado com as enormes mudanças tecnológicas e geopolíticas desta década. Mas como, se nem um plano de digitalização total dos negócios públicos e privados está à vista? E sem isso nada para de pé. Esse é o cenário.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas