Confusões ideológicas
A economia começa a dar sinais de vitalidade, depois do desgaste dos dogmas ultraliberais que quase levaram o setor público ao colapso por falta de recursos e de gente qualificada pela ideologia de que o Estado é “do mal” e promotor de “gastança”, segundo seus ideólogos.
Estado balofo e capturado por interesses oportunistas tem mais a ver com a disfuncionalidade de sua governança e dos eleitos para governá-lo do que com a sua natureza. Por analogia, um condomínio residencial em ruína é resultado de zeladoria inepta e, sobretudo, da omissão dos moradores. Áreas comuns funcionam com regras e gestão supervisionada.
A mudança de governo implicou maior interesse pela governança do que existe para servir diretamente a quem depende, entre outros serviços, de saúde pública e a previdência universal. Mas governar também exige cuidar das contas públicas, com foco em sua estabilidade, e antecipar (planejar, melhor dizendo) as tendências da transformação produtiva e os seus impactos sobre a geração de empregos e a mobilidade social.
Embora com falhas na educação, no INSS, ainda às voltas com as filas de espera por perícia médica e atenção aos pedidos de aposentadoria, a gestão federal dos serviços sociais melhorou em apenas um semestre, como atestam as pesquisas de opinião sobre a aprovação do governo. Já quanto à economia há controvérsias, mas mais políticas que técnicas.
A ortodoxia do Banco Central, reverenciada pelos traders de papéis do Tesouro e com ampla cobertura editorial, é ideologia na veia, por exemplo. A gestão monetária é tratada como exemplar, apesar de o IPCA já estar em 12 meses até julho abaixo da meta central definida para o ano todo (respectivamente, 3,19% versus 3,25%), enquanto a taxa Selic segue estacionada em 13,25%, com tendência de retrair em conta-gotas.
Isto implica juro real de 10,20%, o que expulsa os negócios lícitos do mercado de crédito. O IPCA-15 de julho teve queda no mês de 0,07%. Deflação significa economia na antessala da recessão. A inflação de serviços recuou e a difusão dos aumentos ficou abaixo de 50%.
Muito estranho em tal cenário falar em méritos. Mas foi essa uma das razões da agência de risco Fitch, ao lado do “arcabouço” de ajuste do orçamento de gastos federais, para elevar a nota de crédito do país. Soou como advertência contra qualquer ação em prol do crescimento.
Convergência de modelos
O que divide as opiniões, com implicações no Congresso, nas reformas econômicas, na postura do governo e no ânimo do empresariado, está no papel do Estado vis-à-vis o capital privado.
Pela ótica neoliberal, o Estado é mínimo e, no máximo, regulador dos negócios. Pelo viés mais socialdemocrata, deve amparar os mais pobres e induzir o investimento sem comprometer o equilíbrio fiscal. A esquerda enfatiza menos o lado fiscal e admite o Estado controlador de atividades empresariais.
Os governos Lula oscilaram entre as duas últimas vertentes, tendendo mais à esquerda com Dilma. De Temer a Bolsonaro, tentou-se encolher o Estado e enxugar os benefícios sociais. Em todos estes momentos, não se deu ênfase à macroeconomia pró-crescimento, enquanto no mundo, em especial nos EUA e, com atraso, na Europa, há uma convergência com o modelo asiático de desenvolvimento, que põe a indústria e a economia do conhecimento no topo das atenções.
Há uma ironia nesse movimento.
O modelo asiático, a rigor, se inspira no New Deal dos EUA, lançado para tirar a economia da grande depressão, e no dirigismo estatal a la Keynes no pós-guerra. Era o que se fez no Brasil dos anos 1950 a 1980, tendo sido referência para a política de abertura da China.
A catarse necessária
Estas sínteses nunca foram assimiladas no Brasil depois da debacle do regime autoritário. A questão mal-entendida é que tipo de economia resultou de quatro décadas de asfixia do desenvolvimento a partir do colapso, nos anos 1980, do investimento bancado por dívida externa.
A ênfase na geração de divisas mirou a agropecuária e a mineração e descuidou da indústria de transformação, que ainda se estruturava, apesar de, à época, ser maior e mais complexa do que a da China e da Coréia do Sul. Sem uma catarse sobre porque nos perdemos, semelhante à iniciada nos EUA por Trump e aprofundada por Biden – keynesiana na ação e conservadora na essência – continuaremos patinando. Estado não é problema, é solução, se bem-gerido, o que aqui está longe de ser.
A economia legada nestas décadas é pouco elaborada, como se deduz da leitura dos novos investimentos. O país começou a explorar lítio, um mineral estratégico para as baterias que movem os veículos elétricos, que condenam o motor a combustão ao passado, e os painéis de geração de energia solar. Tais empreendimentos repetem o modelo extrativista.
O lítio é exportado sem processamento, enquanto a cadeia automotiva no país não fará o salto tecnológico em curso nas matrizes e em suas principais subsidiárias sem a retaguarda de baterias, além de insumos eletrônicos também importados. A energia limpa solar e eólica abriu a oportunidade de produção do chamado hidrogênio verde, mas se cogita exportá-lo para a Europa, em vez de aproveitar sua abundância a baixo custo para incentivar indústrias de última geração no Nordeste.
Falta estratégia moderna
Lula sabe que o desenvolvimento requer indústria forte e inovação digital, ambas impulsionadoras das atividades de serviços. Estes não prosperam sem aquelas, ao contrário do que diz a ortodoxia ainda em voga no Brasil. Sem indústria, o consumo se torna dependente de gasto eleitoreiro que a ortodoxia abomina, ao implicar emissão de dívida, mais carga tributária e financismo ocioso. Assim estamos há 40 anos.
O resultado aparece num estudo inédito da Confederação Nacional da Indústria, CNI, segundo o qual quase metade do maquinário em uso no Brasil é obsoleta, com idade média de 14 anos. Essa é a demonstração da chamada histerese, termo emprestado da física: décadas de baixo crescimento deformaram nossa base produtiva de modo que ela diminui, segue encolhendo e não volta à situação em que se achava ao começar a longa estagnação, na ausência de políticas realistas.
Macroeconomia distante de estratégias voltadas ao crescimento movido pelo investimento em inovação tecnológica e sistemas de gestão leva à situação captada pela CNI. E as medidas microeconômicas citadas como antídoto, tipo reforma tributária, abertura comercial e educação, não bastam sem o suporte por anos a fio da prioridade da construção tanto de oferta como de demanda (inclusive externa), com custo de capital, tributação e taxa cambial direcionados pelo objetivo.
O que talvez careça à formulação do desenvolvimento no país é deixar explícito que bancos estatais e subsídios maciços são dispensáveis. O modelo de renascimento industrial nos EUA prevê aportes públicos com fundos privados, compromissos sociais e ambientais e regra de saída.
Esclareça-se desde já que tal programa de longo prazo orientado pelo investimento e produtividade é uma formulação tanto dos conservadores quanto dos progressistas do arco ideológico nos EUA. Ideias obsoletas à esquerda e direita turvaram, entre nós, o raciocínio estratégico.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas