As chamadas “narrativas” ocultam a exaustão do sistema político e o passeio ao acaso na economia

Faz de conta nacional

A economia e a política, uma alimentando a outra, estão encrencadas pelo poder do que se convencionou chamar de “narrativa”, a construção por influenciadores de opinião em suas respectivas áreas de interesse de cenários e avaliações à margem da realidade dos fatos.

O fenômeno se dá em toda parte, talvez de modo mais intenso nos EUA, onde Donald Trump, empresário e político farsante, se mantém à frente das pesquisas sobre a sucessão de Joe Biden ano que vem, apesar das provas explícitas de que tentou sabotar o resultado das eleições de 2020, quando não se reelegeu, desenhando o roteiro copiado no Brasil pelo seu admirador confesso, incluindo a invasão da sede do governo.

A fenomenologia das narrativas, que surgem com método e se propagam como fogo em capim seco graças às redes sociais, distrai as atenções sobre o que é relevante. Assim estamos, para ficarmos no Brasil, com as “narrativas” sobre a longa permanência da taxa de juro determinada pelo Banco Central, a Selic, supostamente por ser necessária contra a rebeldia inflacionária apesar de seu viés declinante. Quem discorda é “cancelado”, outra expressão do mundo do faz-de-conta, do debate.

O contexto das análises sobre o que o BC faz ou deixa de fazer tira de cena a disfuncionalidade da política, tratada como embate contra o governante da vez pela liberação do dinheiro de emendas ao orçamento federal por partidos fisiológicos. É isso, mas não apenas isso, o que passa batido ao se dar nomes aos personagens centrais dessa confusão – hoje, os presidentes Lula e o da Câmara, Arthur Lira.

A simplificação excessiva embaça a compreensão: o Congresso composto majoritariamente por parlamentares de centro-direita em contraponto ao Executivo de centro-esquerda. Não há acordo de convivência baseada em programa, mas em torno de tópicos à revelia do interesse geral.

As sequelas do resultado assim definido pelas urnas estão no que faz o BC e o que se espera de reformas como a tributária. Seu princípio é o da simplificação sem aumento de impostos. E os políticos, que dizem se opor a majorar a carga tributária, cobram do governo o pagamento de emendas e defendem um novo regime fiscal, o tal “arcabouço”, mais rígido que o proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Grife vendida por camelôs

A discussão política está mais para jogo de cena que para disputa de teses programáticas. Se assim fosse, o embate seria às claras, não à sombra, conforme o encontro de Lula e Lira na noite de quarta-feira.

No caso do Copom, Comitê de Política Monetária, que nada mais é que o colegiado de nove diretores do BC, todos com mandato e autonomia só para cumprir a meta de inflação definida pelo governo, a bronca com o corte de 0,50 ponto de percentagem em vez de 0,25 como esperado pelos traders é tão legítima quanto bolsa de grife vendida por camelôs.

Na reunião desta quarta, o Copom contrariou as apostas da maioria dos traders de títulos da dívida pública – o chamado “mercado” pela imprensa, o que também faz parte do vocabulário das narrativas, pois mercado é um conceito mais amplo -, ao se decidir por um corte maior que o previsto sem aviso prévio a que estão acostumados.

Essa é a razão da bronca, potencializada por análises publicadas na imprensa segundo as quais o corte de juro deu errado. Faltou ao analista explicar ao distinto público que operações com títulos de dívida embutem previsões da taxa. Quando vem o inesperado, os fundos geridos pelos traders, cuja grosso da remuneração varia de acordo com a rentabilidade da operação, perdem dinheiro. Assim é.

E assim deveria ser entendido: ninguém trata de macroeconomia nestas supostas análises técnicas, tratam do perde-ganha de capitais ociosos sem conexão com o juro de política monetária e a taxa de inflação.

Chama-se de investidor, que para a maioria significa o dinheiro dos que custeiam projetos de expansão e desenvolvimento de inovações, o que, na prática, é a aplicação de disponibilidades eventuais de caixa de empresas e de fundos disponíveis por pessoas. Não são investidores como o leigo entende, são aplicadores, vulgo rentistas.

Temos de falar de crédito

O que libera recursos para o investimento lato sensu, aquilo que os empresários demandam para seus negócios, é o custo do capital em sua conceituação ampliada – prazo curto para capital de giro e contas a pagar; prazo longo, acima de dois anos, para financiamento de compra de maquinário, construção de edificações, inovação de produtos, obras de engenharia pesada em logística, geração de energia etc.

A taxa do overnight regulada pelo BC é o piso do custo do capital e indexa as emissões e o giro dos títulos de dívida do Tesouro. Outros instrumentos operados pelo BC reprimem o crédito no país há décadas, tornando-o, deliberadamente, escasso e, portanto, caro.

O depósito compulsório a que os bancos se obrigam a fazer em conta do BC de parte dos recursos captados é um deles. Regras prudenciais muito rígidas cumprem o mesmo papel de conter nos bancos a criação de crédito. A cobrança de IOF, Imposto sobre Operações Financeiras, com propósito arrecadatório (desde o fim da CPMF) e não regulatório, está também na lista das distorções que precisam ser erradicadas.

Não há nada disso na maioria dos países. Uma discussão séria sobre o crédito tem de repassar essa agenda, que inclui a revisão do marco de garantias em fase final no Congresso, muito mais ampla que a Selic.

Ocaso da política mambembe

Ainda não se põe desta forma, mas o que se assiste, desde 2014, é o esgotamento do sistema de governança das instituições, do Judiciário ao Congresso, passando pelas relações federativas. Assistimos a um jogo de faz de conta, sugerindo uma normalidade que não se sustenta.

Pegue-se o orçamento: sua execução é pelo Executivo, mas as rubricas que compõem a lei orçamentária anual (LOA) são dadas e fiscalizadas pelo Congresso e apenas por ele, com o Tribunal de Contas da União como seu órgão auxiliar.

Assim sempre foi, mas não era seguido pelos presidentes da República até a gradativa imposição do pagamento de emendas. Hoje, o Executivo se obriga a liberá-las, mas pode reter o pagamento. Isso também tende a acabar, tornando mais disfuncional o que sempre foi mambembe: o presidencialismo com dispersão partidária.

A aproximação do chamado centrão do governo é meramente de ocasião. Não vai apoiar o governo além do que concordam suas bases eleitorais, em sua maioria de orientação conservadora. Vai ocupar ministérios para se fortalecer nas eleições municipais e ter mais chances, em 2026, de eleger grandes bancadas de deputados federais. Quanto mais deputado o partido eleger, maior será a dotação do seu fundo partidário.

É óbvio que essa relação é promíscua, não envolve programa, não tem conexão com as necessidades do país, não trata de eliminar carências históricas. Já ficou claro, inclusive para os próprios partidos, que esse sistema se exauriu. A mudança virá. A questão é como e quando.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas

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