País tem os fundamentos para ser potência mundial, diz estudo, mas os desperdiça por omissão das elites

Sonhos aspiracionais

A agenda política e econômica de sexta-feira resumiu décadas, talvez séculos, de história recorrente do Brasil. Teve o anúncio de plano de obras trilionário no papel e a divulgação da inflação do mês passado, essa nossa veterana companheira de estrada, além das novas revelações das chinelagens de Bolsonaro & Cia. Logo, conforme o ritmo alucinante das redes sociais, tais eventos serão esquecidos, outros assemelhados (ou piores) vão substituí-los, e tudo seguirá no mesmo baticumbum.

O PAC-2, continuação do Programa de Aceleração do Crescimento, marca do governo de Dilma Rousseff, empacota projetos de infraestrutura que estavam parados, pensados ou prometidos, todos em geral importantes e necessários, componentes do Plano Plurianual, peça constitucional tal como a Lei Orçamentária Anual (LOA) proposta pelo executivo à votação do Congresso. Mas, tal como os planos de desenvolvimento dos governos militares e de metas do período anterior, sem definir um padrão longo e duradouro do investimento transformador. Daqui a pouco estaremos na metade da década de rupturas mais intensas no campo tecnológico e da ordem geopolítica, com risco de vermos outra década perdida.

É do que trata um denso relatório da Bismarck Analysis, consultoria de risco baseada nos EUA, divulgado semanas atrás, intitulado “Raízes da longa estagnação do Brasil”. Autor do estudo, o cientista político da Eslovênia radicado em San Francisco Samo Burja dá as razões: “O Brasil tem os fundamentos para se tornar potência mundial”. Mas já os tinha desde o reinado de Dom Pedro II. Nunca os realizou.

“Na prática, a falta de instituições políticas funcionais significa que o país desperdiçou esse potencial.” Não precisa ser um cientista para chegar à mesma conclusão. Ele destaca a extensão e a população, das cindo maiores do mundo, país mais populoso do Ocidente logo após os EUA, a imensidão das terras aráveis sem equivalente, abundância de água num mundo cada vez mais sedento pela mudança climática, riqueza mineral, de ferro a petróleo, produtor de energia limpa graças à rede de hidrelétricas e, crescentemente, solar e eólica, e por aí vai.

Em 1961, Burja destaca, o então presidente Jânio Quadros declarou que “em cinco anos o Brasil será uma grande potência”. Passaram-se 62 anos e só a ideia aspiracional mudou, de “grande potência”, como ele afirma, para “grande potencial”, incluso como tal no bloco dos BRICS.

Mediocrização das decisões

Análises estruturais como a do esloveno Samo Burja são necessárias, apesar do aparente viés academicista e da propensão de consumo apenas de notícias em tempo real. Buscam-se posts e memes e não informação. O resultado tem sido a mediocrização das ações públicas e privadas.

Segundo Burja, é importante rastrear a ascensão e queda de potências intermediárias ou globais porque cada movimento traz a “oportunidade para instituições funcionais recém-empoderadas e atores reais terem avanços idiossincráticos em ciência, tecnologia, cultura e indústria, adotados depois pelo resto do mundo, com resultados imprevisíveis”.

A busca da grandeza nacional por países como a Turquia resultou em avanços na tecnologia de drones militares, ele cita. Em Taiwan e na Coreia do Sul, o crescimento industrial dirigido pelo estado resultou em infraestrutura técnica e empresarial que fez aumentar enormemente o poder de computação disponível através do avanço dos microchips.

“Devido ao tamanho do país, população, riqueza de recursos naturais e falta de ameaças militares críveis e imediatas, as razões para as altas expectativas perenes para o Brasil eram e são corretas”, Burja ressalta. “Não é o potencial do Brasil que foi mal avaliado, mas sim a capacidade das instituições e elites do país de realizá-lo. Desde o fim do século 19, o Brasil tem sido um país com uma elite fragmentada e incapaz de construir instituições funcionais.” Esse é o ponto.

“Isso torna o país um lugar onde travar batalhas políticas caras tem prioridade sobre o desenvolvimento econômico. Esta situação manteve-se até os dias de hoje.” Resumo perfeito. O lavatismo, para darmos um exemplo de batalha política, arruinou a engenharia pesada, uma das raras áreas nacionais reconhecidamente competitivas no mundo. Foi-se.

Macroeconomia da estagnação

A disfuncionalidade da política no país viceja em toda parte, viu-se mais uma vez na formulação do novo PAC, um arranjo de obras em que se teve que envolver cada um dos 27 governos estaduais, as lideranças de partidos na Câmara e no Senado, e  se fez corte e costura para lançar no orçamento ainda desconhecido para 2024 a parte federal dos gastos em obras inacabadas e novas. E isso num orçamento deficitário e com a meta de zerar o déficit fiscal, sem juros da dívida, já em 2024.

Os investimentos federais ainda não chegarão a 1% do PIB até 2026, o horizonte do novo PAC, quando deveriam estar em 4,2% do PIB, segundo projeção de entidades empresariais como Fiesp e Abdib, todos os anos, por duas décadas, só para repor a obsolescência de estradas, redes de telecomunicações e energia, portos etc. Ano passado, segundo conta da consultoria Inter.B, investiu-se nestes campos 1,86% do PIB. Este ano a estimativa é de 1,94%, o grosso de fundos privados e externos.

Fica dificil modelar projetos com maturação longa e retorno privado, com dimensão também social, tipo estrada pedagiada, com os custos de capital viciados por juros de política monetária, a Selic determinada pelo Banco Central, extraordinariamente elevados a pretexto de conter a inflação, atrair dinheiro de fora e segurar consumo e salário real para não exacerbar o déficit do balanço de pagamentos do país.

“Zona tampão geopolítica”

Apenas um “operador político de verdade”, conforme os termos usados pelo estudo da Bismarck Analysis, “pode reformar a economia política do Brasil para permitir o fortalecimento das instituições econômicas e governamentais”. É o que se pode chamar de pessimismo realista, e é o que orienta o capital de longo prazo a vir para cá ou outro lugar.

A solução, segundo Samo Burja, “provavelmente levaria décadas, mas seria o cenário mais realista para impulsionar o Brasil depois de um século de estagnação”. A análise pragmática sugere que as lideranças políticas e empresariais deveriam cuidar do curto prazo, conforme os programas de Lula negociados com o centrão da Câmara e Senado, mas com olhos no horizonte, cuidando de reformas realmente estruturais sem o receio de sanções dos fundamentalistas de mercado. Como nos EUA, onde conservadores e progressistas desistiram do chamado neoliberalismo.

“Na ausência de reforma política ampla e profunda, o Brasil manterá sua trajetória atual como um país grande, mas estrategicamente banal, cujas instituições disfuncionais e quadro político caótico significam que o país é apenas uma zona tampão geopolítica aceitavelmente inerte para EUA e fornecedor acessível de recursos naturais para China”, diz o relatório.

Se os políticos não veem ou não querem ver, que outros atores forcem o encontro com a realidade. Nada está perdido, e tempos de mudanças globais favorecem novos caminhos. Está na mão. Ou não?

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas

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