Ainda que não houvesse o cenário de riscos globais, ater-se aos temas fiscais revela imprudência

Essa agenda é pequena

Considerando a apreensão global com os cenários de guerra na Europa, no Oriente Médio e na Ásia, as discussões em Brasília no governo, no Congresso, no Judiciário e entre os três poderes parecem distrações.

É certo que o tema da vez é e sempre será relevante: o financiamento da Lei Orçamentária Anual (LOA), que resume as obrigações e os planos do governo federal. Mas passar quase o ano inteiro preso a essa pauta indica disfuncionalidades graves tanto da gestão do Estado quanto de suas relações com o Congresso, a última instância do plano de contas, e os entes federativos. Eles contam com repasses obrigatórios e os de emendas parlamentares para seu custeio permanente e obras miúdas.

A política imperfeita, reunindo presidencialismo forte e parlamento moldado pela Constituição como se o regime fosse parlamentarista, ao mesmo tempo em que o STF o enfraqueceu ao julgar inconstitucional em 1995 a cláusula de barreira para vedar representação de partidos com baixo votação, dispersou a responsabilidade fiscal. E tornou espúrio o mecanismo regular de formação de maioria pelo presidente de turno.

O Congresso restaurou parcialmente o que o STF glosou em 1995, mas o fez numa versão mais branda que a original, sem esvaziar a formação de partidos mercantilistas que servem ao governante da vez em troca de facilidades políticas para seus membros e outros fins nada nobres.

Esse já era o cenário nos quatro governos petistas desde 2003, fez-se ainda mais desestruturado na gestão Bolsonaro, quando ele cedeu a execução orçamentária para os partidos de centro-direita apoiá-lo e afastar a ameaça de impeachment por suas atitudes na pandemia e pelos ataques à Corte suprema. O próprio STF pôs ordem na casa, no fim do ano passado, ao declarar inconstitucional o tal orçamento secreto.

Só que entre as opções que dispunha para gerir o orçamento maquilado de 2023, uma peça equilibrada só no papel, Lula não se apegou ao que o STF dispôs e aceitou a devolução de metade das emendas geridas pelo tal orçamento secreto, ou RP-9 pelo jargão técnico, com a expectativa de que a Câmara e Senado não lhe criariam embaraços. Foi assim que se votou a PEC da Transição, abrindo espaço de R$ 168 bilhões de gastos.

Parasse por aí e talvez as relações políticas se normalizassem. Mas se quis mais do Congresso, cuja maioria até ontem apoiava Bolsonaro, e isso com o mundo em desordem. Esse jogo não está jogado. Lá e aqui.

As opções à frente de Lula

Ainda em dezembro interlocutores do presidente lhe disseram que não esperasse tanto do Congresso, priorizasse o crescimento como forma de aumentar a arrecadação dando força ao investimento, trouxesse para o centro das discussões o setor privado e se preocupasse menos com os temas da agenda do mercado financeiro, exceto a reforma tributária, que, a rigor, é um projeto do parlamento e não do executivo.

Ele chegou a convidar dois nomes expressivos e com alta densidade política para o Planejamento e o MDIC – o economista André Lara Resende e o industrial Josué Gomes da Silva.

Por razões da ocasião, ambos não puderam aceitar o convite, desequilibrando as discussões sobre política econômica e desenvolvimento junto a ele. Mas já era o indicativo de que Lula procurava opções à ortodoxia mercadista.

Depois vieram o tal do arcabouço fiscal e os projetos de aumento da arrecadação dos impostos corporativos e dos mais ricos, dando foco ao Congresso. Eles contrariam a representação dos partidos majoritários no Congresso, sobretudo o empresariado, de modo que os aprovar custa ao governo entregar seus anéis, como a direção da CEF. Assim estamos.

Não é só desossar o gasto

O caminho alternativo poderia ter sido, em primeiro lugar, tirar boa parte do investimento público da LOA e trata-lo como parafiscal. Das propostas que moldam esse caminho, todas preveem aportes em fundos de ativos com gestão e funding privado em alto volume. É o que o próprio programa de obras do governo, o novo PAC, prevê. O dinheiro privado detém mais de 60% das projeções do investimento necessário do PAC.

A vantagem desse sistema é que ele não compromete as metas da LOA, em especial o resultado primário, sem juros, que o ministro Fernando Haddad gostaria de zerar em 2024 e atingir um superávit de 1% do PIB em 2026.

Também permitiria focar a melhoria da gestão do Estado, uma missão, já nem mais projeto, pois no mundo das relações digitais e o domínio crescente da inteligência artificial não cabe mais, entre outras obsolescências, arrecadar imposto pelo processo declaratório.

Lula se fez ouvir ao declarar na sexta-feira que “para quem está na Fazenda dinheiro bom é dinheiro no Tesouro, mas, para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”.

Não, ele não advogou gastança, como porta—vozes do fundamentalismo do mercado na imprensa correram a criticar. Expressou que controle fiscal é uma conta com duas entradas: gasto no numerador e produto, ou seja, PIB, no denominador. Não é só desossar o gasto, é também engordar o PIB.

Ponto sem retorno no mundo

Fato é que, tanto pela mudança estrutural das exportações, com agro, minérios e petróleo bombando a entrada de dólares, quanto pelo mundo com a geopolítica confusa e ameaçadora, não cabe ao governante nem aos políticos operar a economia na defensiva. E que não haja guerra.

Como disse o CEO do JP Morgan, Jamie Dimon, podemos estar no momento “mais perigoso que o mundo já viu em décadas”. E não só pelo risco de guerras convencionais. É que, nos últimos 22 anos, EUA e seus aliados têm exercido cada vez mais o poder económico em vez da força militar.

O resultado é o fechamento do fosso entre finanças e guerra, segundo ensaio na revista Politico de Josh Lipsky e Julia Friedlander, ambos analistas renomados em segurança global. Isso é um mundo novo.

Uma coisa são as sanções comerciais e financeiras contra Cuba, Irã e Coreia do Norte. Outra é contra a Rússia, potência nuclear, incluindo o confisco de ativos no exterior e contas bancárias, algo como US$ 300 bilhões, sugerindo igual ameaça contra a China conforme evolua a questão de Taiwan.

“Será que Washington entenderá as implicações para a sua formulação de políticas daqui para frente?”, eles indagam.

Se Washington entende ou não, é com eles. Nós é que não podemos ser pequenos e ignorar as transformações que passam em tempo real diante de nossos olhos. A imprudência transcende eventuais restrições fiscais.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

Deixe uma resposta