O tempo passa…
O tempo passa…, conforme o bordão de um antigo radialista de jogos de futebol, e seguimos entretidos por distrações – guerra em Gaza, as agendas de visitantes de ministérios, meta de déficit zero federal na lei orçamentária de 2024 etc. – que mal roçam o que efetivamente nos aflige: a falta de crescimento econômico parrudo, a mãe de todos os nossos déficits, sobretudo o fiscal. Que nos subtrai a perspectiva de um tempo melhor, enquanto o mundo passa voando jogando no ataque.
Orçamento fiscal é sempre um assunto a monitorar ao inserir todas as despesas do Estado, entre as obrigatórias (folha do funcionalismo, os déficits da previdência pública e INSS, repasses à educação e à saúde operadas por estados e municípios, custeio do Judiciário e Congresso, transferências de renda) e as contingentes (custeio da administração federal, investimentos em infraestrutura). Tais gastos, chamados de primários, não incorporam juros da dívida e excedem a arrecadação de impostos há mais de década. Os superávits primários em 2021 e 2022 se deveram mais a represamento artificial que a uma mudança estrutural.
De modo geral, o plano de contas estatal representa algo como 20% do PIB na parte federal, consumindo toda a receita de impostos e mais 1% a 1,5% do PIB de emissão de dívida pelo Tesouro Nacional. Com estados e municípios, chegamos a 34% do PIB de carga tributária mais 7,7% de déficit nominal (conceito que inclui o serviço da dívida emitida pelo Tesouro Nacional para fechar as contas da algaravia fiscal).
Olhando-se por esse prisma, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem razão ao priorizar a gestão fiscal do orçamento federal, ou seja, de suas despesas e receitas. Essa é a área de eficácia da tesouraria do Estado. Mas como outros do passado recente está enredado pelo que é mais arte que técnica, ao tentar compor intenções irreconciliáveis.
Governantes e políticos fazem do orçamento instrumento eleitoral e o alvo último dos ajustes fiscais é, precisamente, enquadrá-los todos a fim de dar ao Estado autonomia frente ao mercado financeiro.
Estamos assim desde a reforma monetária incompleta de 1994, e isso por lhe faltar a perna fiscal, chegando hoje à exaustão do plano de contas. Não há propostas estruturais para virar a tendência do gasto em qualquer situação correndo à frente da receita, com um agravante: não funciona como motor de partida do crescimento cuja falta implica mais déficit e menos capacidade produtiva e mobilidade social.
Austeridade até a eleição
Nesse puxa-estica, que lembra a metáfora da ostra agarrada à pedra açoitada pelas ondas, os ministros fiscalistas como Haddad contam com a ajuda interessada do mercado financeiro. Se o plano de ajuste, e já houve vários, ameaça desandar, o juro sobe, o dólar entra em crise, a bolsa cai, as emissões encalham e a imprensa passa a falar de abismo fiscal, precipício, e a espancar o presidente de turno.
Mas, como se sabe de antemão que o plano tem validade até a próxima eleição antes de começar a engripar, o governante sofre um cerco para não gastar a tinta da caneta e o Congresso cuida de engessar na lei orçamentária o que move seus pares: o dinheiro dos fundos partidário e eleitoral, as emendas de pagamento obrigatório a que parlamentares têm direito e as exceções que blindam os setores econômicos aos quais se ligam, como o agro e o financeiro, das “maldades” fiscais.
Assim era, com o presidente segurando a torneira das emendas a cada véspera de votação importante no Congresso para garantir os votos da base aliada por conveniência. Só que isso se foi no governo passado, com o tal do “orçamento secreto” e a Casa Civil como braço estendido da maioria parlamentar. Ambas já não estão disponíveis, e é o que está em disputa de forma meio velada. Vez ou outra para lembrar que o poder é fugaz o governo sofre uma derrota e eles voltam a conversar.
Consequências indesejadas
Essa disputa é sofisticada. Primeiro o Congresso regateou antes de aprovar o chamado “arcabouço fiscal”, que criou metas ao exercício do orçamento e sanções (brandas) em caso de descumprimento. Depois veio a ordem de cima: não cortar gasto, nada de reforma administrativa, um mínimo para gastar com infraestrutura (cerca de R$ 68 bilhões, verba do novo PAC, o programa de obras). Foi assim que surgiu o programa de recomposição de impostos federais, contando com a ajuda do STF.
Desde 1988, ano inaugural da Constituição, somos conduzidos pelo que determinam as obrigações impostas ao Estado e a caçada aos meios para cumpri-las. Começou-se com o gasto coberto pelo imposto inflacionário que o Plano Real estancou. Na sequência, nos dois governos FHC, houve um aumento brutal de impostos. A carga tributária subiu 11 pontos de percentagem em relação ao PIB até o patamar de 34% que tem se mantido desde 2003. Dramático é que assim foi com o avanço da dívida pública.
Da somatória dessas decisões decorre o esvaziamento da indústria e o emprego precário, disfarçado de microempresário individual, exigindo programas compensatórios como o Bolsa Família. E chegamos a isso: LOA com déficit estrutural, financiada por dívida com o caixa líquido dos bancos e empresas mais fortes, carga tributária acima do razoável nos termos de uma economia emergente (a maior do mundo por este critério) e juro do crédito (nem se fala da Selic) indutor de inadimplência.
O plano do déficit zero em 2024 visa suturar a ferida fiscal, mas ao contemplar apenas o aumento de impostos tem risco de provocar mais do mesmo que pretende combater. A síndrome de consequências indesejadas.
Cadê o setor privado?
A tributação dos fundos exclusivos de alta renda e de offshores tem levado gestores de ativos a procurar nos EUA e na Ásia oportunidades para deslocar o capital ocioso. Mudança de domicilio fiscal está em alta, assim como a troca de aplicações por dívida no exterior.
Quanto ao fim das subvenções do ICMS na base de cálculo de tributos federais e dos chamados Juros sobre Capital Próprio (JCP) o problema é que são tratadas como meios de evasão do imposto devido. É fato, só que em muitos casos foi o meio de manter uma empresa no Brasil vis-à-vis o ônus tributário menor em países como México, EUA etc. Isonomia tributária tem mérito inatacável, mas no bojo da reforma da renda, e não como casuísmo para cobrir gasto fiscal de relevância duvidosa.
Nada disso está sendo considerado, apesar dos alertas ao Congresso e ao governo no sentido de que ajuste fiscal não substitui o que não há faz muito tempo: uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo.
Sem isso, resta o que temos: estagnação, ajuste fiscal permanente e dependência perigosa de commodities. Já passa da hora o setor privado parar de dar de ombros e se voluntariar como parte da solução. Como, aliás, até as centrais sindicais estão pedindo.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.