Sucesso da Nvidia confirma ascensão da inteligência artificial e prenuncia disrupções seriadas

Vitória dos algoritmos

A notícia sensação da semana veio da tecnologia e não do que o mundinho da política brasileira tratou à exaustão, no rastro da declaração profundamente infeliz do presidente Lula ao equiparar o Holocausto da Alemanha nazista aos horrores da guerra travada em Gaza pelas forças de Israel contra o grupo terrorista Hamas.

Mais impactante para a construção do futuro, que os mais atentos estão assistindo acontecer ao vivo, e para a disputa geopolítica e as guerras hibridas quase invisíveis, sem armas nem bombas, que as acompanham foi o resultado do balanço da fabricante de placas de vídeo Nvidia, baseada em Santa Clara, California.

Impulsionados pela demanda acelerada de programas comandados por inteligência artificial (IA) e suas variantes generativas (IAG), capazes de gerar textos, áudios, vídeos e automatizar processos de máquinas de todo tipo, os chips da Nvidia são como o petróleo da era de inovações movidas por tecnologias de fronteira. Quem a tiver ditará os novos padrões e a correlação de forças no mundo.

Seus chips aceleram a capacidade de processamento de máquinas por sua vez cada mais possantes, autônomas e decisivas para a economia guiada por algoritmos que tudo “veem”, antecipando os movimentos de consumo (ou os impondo), os fluxos dos dinheiros e até a ameaça de linchamentos virtuais fomentados por interesses sinistros. Os dados do balanço da Nvidia dão a dimensão do que está em ebulição.

A receita do último trimestre cresceu 265% sobre igual período de 2022, atingindo US$ 22,1 bilhões, e tende a US$ 24 bilhões até março. Tal resultado em curtos 12 meses catapultou seu valor de mercado para US$ 2 trilhões, tornando-a a quarta empresa mais valiosa do mundo, depois de Microsoft, Apple e a petroleira saudita Aramco.

Nvidia é uma das “7 magníficas”, formadas por Apple, Alphabet (a holding do Google), Amazon, Meta (Facebook, Instagram), Microsoft e Tesla. Somadas, as sete respondem por 30% do valor de mercado do índice S&P 500, ou US$ 13,1 trilhões – o dobro do mercado de ações do Japão e metade dos lucros das empresas abertas da China.

Tais dados são assombrosos, mas duas implicações importam muito mais. Na geopolítica, a liderança dos EUA na IAG e semicondutores de até três nanômetros parece consolidada sobre a China. E, na economia real, estamos diante de uma revolução e não de evolução.

Outra economia à vista

Sem considerar as possibilidades da IA generativa e os chips de última geração, propriedade das bigtechs e de uma cadeia restrita de desenvolvedores – todas dos EUA embora encomendem a fabricação de seus engenhos a firmas de Taiwan, Coréia do Sul, Japão e, logo atrás, Índia e Vietnã -, restam reações de menor relevância, quase distrações, como as reportadas pelos resultados da Nvidia.

Ao abrir-se a receita de seus chips, constata-se que a clientela da Nvidia vai além das bigtechs. Nela estão grandes bancos globais (JP Morgan, Citi, HSBC etc.), o setor de veículos dos EUA, Europa e Ásia, governos (dos EUA, Canadá, Alemanha, Inglaterra, Japão).

São sinais de que a computação na nuvem, a análise granular das centenas de bilhões de dados corporativos e pessoais coletados em tempo real nas transações cotidianas e as empresas criadas para desafiar as já estabelecidas estão gestando uma outra economia.

As inovações disruptivas são para o bem e para o mal. Do celular, que só servia como telefone móvel, ao smartphone, por exemplo, uma penca de produtos tradicionais ficou pelo caminho ou virou artigo de nicho, tipo máquina fotográfica, bússola, despertador etc. As inovações levam tempo para chegar e um dia arrasam quarteirões.

As câmaras digitais mataram as lojas de revelação de fotos, e o smartphone as dispensou sem piedade. Aplicativos de bancos e fintechs no celular estão fechando agências de rua; o PIX foi o “descanse em paz” do DOC e será do TED, assim como o Drex, a moeda digital do Banco Central, prenuncia mudanças profundas.

Digitalização irrefreável

Mudanças com a intensidade derivada da digitalização costumam ser irrefreáveis e com progressões exponenciais. Em termos práticos, o que se há a fazer, por princípio, não é resistir, mas aceitar.

Entender como tais instrumentos vão mudar o próprio negócio e não tentar adaptar-se e, sim, reinventá-lo. Isso vai além de buscar uma consultoria para fazer o que compete ao quadro permanente.

Exemplo de mudança profunda está na nacionalização de boa parte dos artigos de vestuário que a Shein está promovendo no Brasil em parceria com a têxtil Coteminas. Centenas de pequenas e médias confecções brasileiras estão produzindo peças antes importadas da China, e o fazem por um sistema apurado por IA residente na plataforma do site que não deixa estoque e garante entregas em poucos dias.

Dois resultados saltam aos olhos. Primeiro, se a operação ocorrer com precisão na confecção, com a IA modulando a produção das peças conforme a venda projetada, o capital de giro tende a sair do próprio negócio. Segundo, a engenharia de logística passa a ser o fio condutor da manufatura moderna, unindo a produção aos canais de vendas do e-commerce e estes ao consumidor final.

Shein e sua rival também chinesa Temu não surgiram por acaso na China, como diz John Deighton, professor emérito de marketing da Harvard Business School. As plataformas permitiram às pequenas e médias fábricas chinesas ficarem com a maior parte do lucro nos grandes mercados dos EUA e da Europa antes apropriada por marcas reconhecidas mundialmente como Walmart, Costco e Target.

JP Morgan: hype da IA é real

Casos como estes do e-commerce não são evoluções, segundo John Deighton, são um “novo modelo de negócios”. Ao conectar uma ampla rede de seis mil pequenas fábricas de roupas na China ao resto do mundo, as plataformas Shein e Temu refizeram o fast fashion, diz.

Só que essa abordagem pioneira, tal como também foi o salto da Amazon de livraria online para hipermercado, loja de departamentos e farmácia, tem potencial para ir muito além do varejo. O modelo é flexível para bens duráveis como carros e até contas bancárias.

Foi-se o tempo de gestor e investidor de modelos inflexíveis e hierarquias rígidas de processos. O conceito vale até aos serviços públicos prestados à população. Explica-se assim o frenesi dos mercados com as “7 magníficas” e os números da Nvidia. “O hype da IA é real”, diz o JP Morgan na carta aos clientes. E as rupturas seriadas só estão começando.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

Deixe uma resposta