Política industrial moderna é puxada pela inovação e não tenta dar sobrevida ao que ficou obsoleto

Dilemas da indústria

A política industrial está de volta ao topo das ações de governos no mundo e aqui não seria diferente, embora, com múltiplas metas e centrada em crédito público, ela vale mais por inserir a discussão na pauta econômica nacional do que pelas intenções anunciadas.

A discussão está aberta e quanto mais cedo for feita menos erros serão cometidos. Não se trata de pôr em questão o protecionismo e as políticas tarifárias criticadas pela ortodoxia econômica. Ações industrializantes bem-sucedidas nunca se basearam só nelas, comuns na América Latina, mas não na Ásia, que se industrializou visando o mercado externo antes do consumo interno, o que exigiu educação técnica, inovação copy & paste e qualidade, além de custos baixos.

A formulação do programa, chamado de Nova Indústria Brasil, ainda está em construção e deve ser aperfeiçoada. Separar o apoio ao que configura indústria nova, calcada em tecnologia de ponta, do que é tradicional faz todo sentido. O primeiro prioriza o cruzamento das manufaturas tradicionais com serviços avançados num combo que vai de sistemas inteligentes, em que softwares comandam as operações, ao chamado mundo cripto ou web3, das redes de dados distribuídas e sem controle das bigtechs, vulgo blockchain. Aí está o valor.

Setores tradicionais da manufatura dependem mais de condições de crédito acessíveis, o que não significa necessariamente subsídios, e de facilitação de negócios, começando pelo desmonte da espessa camada de burocracias, cartórios e, sobretudo, impostos onerosos.

Na concepção original das políticas industriais a partir dos anos 1950, a novidade era a indústria de transformação, ou manufatura, com linhas de montagem padronizadas e escala, típicas dos setores automotivo, têxtil, usinagem de peças, processamento de insumos básicos etc. Isso passou, ao menos a concepção original. As novas indústrias têm pouca semelhança com as das gerações anteriores.

Governos têm pouco a contribuir, já que se trata do ocaso de um modo de produção tornado obsoleto. O caso mais emblemático é o dos veículos elétricos, dispensando a cadeia de autopeças que vinha a montante do setor de transportes. O tema é sensível, mas a decisão é mais de seus acionistas e investidores que de ações de política. As matrizes das grandes do setor já optaram pela eletrificação.

A dura verdade da produção

A indústria que a maioria entende no Brasil requer, a rigor, não bem de política industrial, mas de política econômica que triture o chamado Custo Brasil – a trama de usos e costumes de antanho que obstaculiza os ganhos de produtividade sem os quais não há avanço, só há as caravanas de empresários pedintes de proteção e exceções.

Já a política industrial como a praticada nos EUA, com o apoio de Biden e Trump, em reação à estratégia chinesa de expansão global e domínio das tecnologias de ponta, força decisões sanguinolentas.

Sem as centenas de bilhões de dólares de subvenções, os EUA, e a Europa vive o mesmo dilema, condenariam suas montadoras nativas e as ‘americanizadas’, acuadas pela concorrência chinesa e de outras asiáticas que adotaram a bateria elétrica, além da nova cadeia de produtores de componentes de energia renovável e redes de recarga.

Os dados da oferta chinesa praticamente de tudo que é processado com insumos próprios ou importados, virando bens exportados para todo o mundo, são chocantes. Suas siderúrgicas, por exemplo, têm capacidade de produção para atender o mundo inteiro. Como começam a fazer no Brasil, ameaçando a siderurgia nacional.

Está começando também com o setor automotivo instalado no país. Algumas, como Ford e a divisão automotiva da Mercedes, se foram. As que ficam se agarram à motorização flex com etanol e a versões híbridas (elétrico e combustão), para ganhar tempo, já que não virá o investimento em bateria e softwares de suas matrizes.

Dias atrás, o presidente da Anfavea falou de importar linhas de montagem de motor a combustão desativadas em outros países…

Como compor a estratégia

Compreender as necessidades setoriais e as oportunidades à vista ajudariam a compor uma estratégia de expansão produtiva há muito tempo ausente das formulações econômicas e políticas no país.

Para a indústria existente, cabe mais uma réplica do Plano Safra, que garante crédito em condições acessíveis ao agro, como propõe o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva. Ou o que dispensaria um regime excepcional de forma perene: custos alinhados aos de países com os quais nossas empresas disputam espaço no mercado interno e externo, além de crédito normalizado, inexistente há décadas.

Para novas atividades, que estão na manufatura mas não só, duas abordagens clamam por atenção. Uma está no agro, onde ao contrário da exportação direta de produtos naturais há dinheiro grosso para fazer com a produção processada (como o óleo de soja ou cacau com processamento mesmo simples) e até unitização de produto a granel.

Outra oportunidade está na formação de cadeias de negócios com o que é demandado pelas industrias disruptivas, como as de energia solar e eólica, baterias elétricas e geradores. Todas são usuárias de minérios escassos e que há no Brasil em vários casos.

Pense na Indonésia: tributou a exportação de níquel, e a isentou para quem implantasse no país usinas de processamento e fábricas de baterias e de veículos elétricos. A medida foi criticada pelo FMI. Com os resultados, o FMI elogiou a decisão meses atrás.

Consciência expandida

Enfim, hoje se sabe que mesmo o apoio de subvenções a atividades nascentes exige tecnologia disponível, mesmo que em estágio abaixo de quem está na frente, e escalar a partir daí, investindo em mão-de-obra com formação tecnológica (área de excelência do Senai), em pesquisa e desenvolvimento e em novos empresários desassombrados.

E dinheiro para capitalizar esses empreendimentos? Tais atividades são em boa parte bancadas por fundos privados pouco sensíveis às taxas de juros. O grosso do que chamo de tecnoeconomia corre à margem das decisões de governo (como a inteligência artificial e sua progressão generativa) – é como uma economia paralela que cria forma no mundo cripto ou web3 cada vez mais relevante para os fluxos de capitais globais. Governos em geral só chegam quando as inovações atraem atenções e há demanda para regulamentá-las.

Nada disso é novidade no mundo, mas estamos atrasado. Que fazer? Consciência expandida é um bom começo para achar as respostas.

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

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