A cereja do bolo
Está tudo decidido e nada resolvido com a aprovação do novo regime fiscal do gasto público, vulgo arcabouço, por placar eloquente, 372 votos contra 108, uma abstenção e 32 ausências. A votação estampou a liderança do presidente da Câmara, Arthur Lira, sobre a maioria dos deputados e a irrelevância dos radicais de direita e de esquerda que votaram contra, no PL bolsonarista e no PSOL.
O projeto de lei complementar vai passar também sem ruído no Senado, onde o senador Rodrigo Pacheco, presidente da Casa, tende a ser mais compreensivo com as dificuldades do governo sem maioria parlamentar. O presidente Lula ganhou tempo para se compor com Lira, Pacheco e os partidos de centro direita que representam, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aplacar, por ora, o mercado financeiro.
Decidido, portanto, mas não resolvido, pois o crescimento econômico ao redor de 2,5% ao ano, pelo menos, é condição necessária para o regime fiscal zerar até 2025 o déficit primário do orçamento (que não inclui os juros da dívida pública) sem depender de maior aumento da arrecadação tributária, além de economia aquecida ser parte do ritual de acasalamento entre Congresso e governo. Economia sem calor costuma arruinar os projetos eleitorais dos políticos.
Espécie de “pró-mercado”, o regime fiscal que substitui o destelhado teto de gasto criado em 2016 visa tirar a pecha espalhada por traders do papéis, nicho bolsonarista fantasiado de liberal, de que governos socialdemocratas, como de Lula, são perdulários incorrigíveis.
É o carro chefe dos argumentos do Banco Central de Roberto Campos Neto para manter a taxa de juro Selic, segundo o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, em níveis “pornográficos” – ou “excrescência”, como disse o presidente Lula no Dia da Indústria, comemorado quinta-feira na mesma entidade. O que é exagerado: tais termos ou os juros?
A Selic está fixada pelo BC em 13,75% ao ano e, a se fiar no que diz Campos Neto, não desinflaria este ano. O IPCA-15 em 12 meses até maio variou 4,07%, noutro mês em baixa. Isso significa taxa real de 9,3%, um desbunde mundial, ou 8,6%, sem a inflação projetada para 12 meses no último boletim Focus, do BC. Deixo a conclusão para você.
A hora e a vez do crédito
Ao fim de seu quinto mês, o governo Lula-3 fez muito na área social, na normalização das relações externas, na desmilitarização dos ramos civis da administração federal, mas andou de lado na economia.
Parte se deve aos ministros escolhidos e a duas decisões sutis: não levar ao Palácio do Planalto ao menos um ministro com trânsito junto à base centrista majoritária no Congresso e ao não compensar a anemia parlamentar com empresários, conforme a expectativa antes da posse.
Em termos práticos, pouco se falou até agora de mapa do caminho para reverter a decadência da manufatura, que é há mais de três décadas a causa da atrofia de nosso produto em relação à aceleração produtiva do mundo emergente em ritmo de Fórmula 1, enquanto vamos de carroça.
Faltam ações concretas pela inovação tecnológica, para digitalização total da gestão do Estado, para a identidade biométrica universal – premissa da revolução digital que tornou a Índia uma potência global, apesar de ainda abrigar dezenas de milhões de miseráveis, e abriu as portas para o acesso ao crédito farto e barato até a morador de rua.
Crédito, conforme o grande economista Joseph Schumpeter, é mais relevante para a expansão da riqueza nacional que o dinheiro público aplicado na mais bem desenhada política social. Para isso, não bastam Selic decente, política fiscal sem a fissura dos fiscalistas. Precisa de educação financeira da sociedade mais frágil, de marco regulatório de garantias, de concorrência, de facilitação ao empreendedor etc.
Progresso não vem de magia
O Congresso despertou. A lei de garantias votada na Câmara e parada no Senado pelo lobby de cartórios deve andar, com relator já nomeado. Há maior interesse pela discussão de grandes temas. O presidente Lula tem pedido novas ideias. O caso da Índia está em seu radar, e mostrou interesse ao ouvir sobre a criação de fintechs em pequenas cidades.
“Agora começou o jogo”, disse ele no Dia da Indústria na Fiesp. Como dublê de vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin se preparou para fazer anúncios de medidas para revitalizar a atividade industrial, mas foi obstado pelo trade-off autoinfligido do incentivo não compensado pelo novo regime fiscal. Não se abateu e ele segue aplicado em buscar soluções ao impasse. Elas existem.
Temos de ter crescimento, que não virá de magia, de “lição de casa”, de finanças públicas bem-comportadas e regulamentação privada frouxa conforme o ideário neoliberal. Ele virá dos ganhos de produtividade, que permitem expandir a massa de lucros e de salários e o emprego.
Isso, na economia de hoje, exige investir em tecnologias de produção e de gestão, sobretudo no setor público, que está bastante defasado. É disso que trata uma reforma administrativa moderna, que nos termos arcaicos da gestão passada se limitava a cortar ordenado de bagrinho.
Como convencer o parlamento e outras instâncias críticas? Com muita conversa, com apresentação de caminhos diferentes aos trilhados e que nos aprisionaram na estagnação que cancelou a mobilidade social, com exemplos como da Índia. Se a economia continuar a meio pau, o capital seguirá saindo do país sorrateiramente, como tem acontecido.
Medidas não convencionais
Caminho novo é formular para o setor de veículos uma estratégia que associe a exploração de minérios usados em baterias elétricas que já condenaram ao passado o motor a combustão com a reciclagem de linhas de montagem de carros, caminhões, ônibus, duas rodas e máquinas. Ou fazemos algo assim ou as indústrias ou fecham ou viram importadoras.
A Indonésia, grande produtor de níquel, fez isso em 2020 e deixou de exportar minério bruto, atraindo, com uma política de oneração e incentivo, duas siderúrgicas, quatro montadoras, todas com veículos elétricos, do Japão, Coreia do Sul e China, e chamou a Tesla, de Elon Musk. A ação foi criticada no lançamento e hoje é elogiada.
A política externa também permite modelos inovadores. Índia, outra vez, é exemplo. Embora supra sua força militar com 60% de armamento russo e compre petróleo da Rússia, apesar do embargo dos EUA, para refinar e vender a terceiros, o governo Biden fez dois acordos com o primeiro-ministro Narendra Modi, que puseram as empresas da Índia na fronteira tecnológica, um em maio de 2022, outro em janeiro agora.
Tem maneira, além disso, de superar a restrição fiscal, envolvendo fundos de ativos e gestão privados com aporte minoritário de funding público. Israel criou assim sua invejada indústria de tecnologia da informação. Uma macroeconomia em regime de parceria público-privada é a inovação da política industrial reinventada no mundo. Há mais.
A ativação do mercado de consumo de massa, incluindo os mais de 60 milhões na folha estável dos três níveis da Federação, entre INSS, assistência social e servidores. É um quadro limite, mas com alto valor potencial, se o pobre for tratado como ativo e não como ônus.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas