Crédito da nova política industrial em quatro anos é uma fração do que o agro dispõe em uma safra

Menos, caros amigos!

A recepção protocolar das entidades da indústria ao anúncio da política industrial, promessa de campanha do presidente Lula que chega atrasada, pôs em evidência o exagero das reações hostis ao programa pelos influenciadores do fundamentalismo de mercado.

Não há previsão de dinheiro novo no programa, cujos recursos vão vir do orçamento regular do BNDES e da Finep (agência de fomento à inovação tecnológica), nem o crédito subsidiado para umas poucas linhas excederá o que já é operado por tais instituições.

Qual o temor dos economistas do mercado financeiro, grupo pequeno mas influente entre os políticos e a opinião pública por ter livre trânsito na imprensa? Como a maioria sabe fazer contas, agem como evangelistas da ortodoxia financista, mesmo não havendo o alegado risco do intervencionismo estatal, apesar da retórica do programa.

Batizado de Nova Indústria Brasil, o programa prevê um volume de crédito, do qual só parte pequena a juros abaixo aos de mercado, de R$ 300 bilhões em quatro anos, incluindo 2023. O agro desfruta de R$ 435 bilhões em condições especiais somente para o safra de 2023-24, com juros de 8% a 12,5% ao ano. Quem é “campeão nacional” nesta história, conforme o libelo dos antidesenvolvimentistas?

O valor anual para a indústria previsto pelo BNDES e Finep, R$ 75 bilhões, equivale à dotação para a agricultura familiar. Com maior fatia do Plano Safra, 84% do total, o agroexportador dispõe num único ano mais de 20% do prometido à indústria em quatro anos.

Soa ridícula, considerando os privilégios ao agro e a parcimônia à indústria de transformação, a campanha orquestrada para um tipo de política que pôs as economias asiáticas à frente do Ocidente e voltou com Trump e Biden quando ficou claro que o fundamentalismo de mercado solapou o poderio econômico e tecnológico dos EUA.

Espantoso é encontrar em entidades da indústria quem dê ouvidos a tais ladainhas, corroborando supostos riscos de “gastança fiscal”. A nova política industrial tem riscos, mas por ser genérica em vez de concentrar-se no fomento das tecnologias disruptivas, estas sim ameaçadoras ao status quo da maioria dos setores industriais.

Sequelas do bate e assopra

A discussão que se faz necessária deveria ser mais sofisticada do que a vista nestes embates entre ideologias econômicas que muitos mal compreendem, inclusive, ou sobretudo, no próprio governo.

Não é bem o que foi anunciado como política industrial a causa do incômodo de parte dos economistas do mercado financeiro, embora, a rigor, alguns também não percebam o que está em jogo. O plano, em tese coordenado pelo vice-presidente e ministro do Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, foi passado com o titular da Fazenda, Fernando Haddad, guardião do “arcabouço fiscal” e da meta de déficit zero das contas públicas sem juros deste ano.

Conforme o estilo bate e assopra de Lula, o governo topou no fim de 2022 a ideia da PEC da Transição, que abriu espaço para gastos, a maioria permanente, da ordem de R$ 167 bilhões não cobertos por arrecadação, ou seja, bancados por dívida emitida pelo Tesouro.

O “assopra” veio com o tal arcabouço, a fórmula da Fazenda para substituir o antigo teto de gasto, tornado em desuso na gestão Bolsonaro. Ele é muito mais brando que o regime fiscal anterior, mas é também uma regra para conter o expansionismo da despesa.

Não há quem acredite na meta zero, dependente de mais arrecadação de impostos e nenhuma economia de gasto. A expectativa é que a lei orçamentária (LOA) feche o ano com déficit primário (que exclui o serviço da dívida) entre 0,5% e 1% do PIB. A hora da verdade será em março, após a primeira avaliação bimestral da execução da LOA.

China é o risco disruptivo

Os dois grandes méritos do anúncio foram trazer para a ribalta a expansão da manufatura, cuja produção é cadente e na última década e meia tem estado, no melhor cenário, estagnada. Outro mérito foi pôr em cena as deficiências dessa discussão no Brasil.

As implicações de ambos os eventos são múltiplas e complexas. Na política externa, por exemplo, tudo o que se fizer pela indústria encontrará a China como obstáculo. O governo Xi Jinping acentuou o que era mais consequência da prioridade industrial que política de estado. Ou seja: a manufatura chinesa cresceu a ponto de ser vista como “fábrica do mundo”. De cinco anos para cá, o governo assumiu o propósito de criar oferta para toda a demanda global, enquanto reprime o consumo para gerar excedentes vendáveis.

A onda atual está levando o setor automotivo chinês e desalojar a produção de grupos nacionais na Alemanha, França, EUA, Japão, uma tendência já percebida no Brasil. Associada à produção de placas de energia solar, baterias de veículos elétricos e toda a cadeia de minerais críticos para este processo disruptivo, a ameaça que já se vê é a desnacionalização de todas estas atividades no mundo.

Pouco tempo para correções

Com base nos dados da OCDE para os dez setores mais dinâmicos da indústria – do automotivo à eletrônica, TI, metalurgia, máquinas, química e metais básicos –, em 40 países, o ITIF, think tank dos EUA, identificou um cenário devastador. Em 1995, este conjunto de setores representava 11,9% do PIB global. Em 2020, 11,8% (quando a indústria total equivalia a 16% do PIB mundial). Nada mudou?

No agregado, os setores industriais dinâmicos mantiveram a fatia no PIB global nos últimos 25 anos. Mas, na leitura detalhada, viu-se que a China cresceu e se tornou líder em sete desses 10 maiores setores industriais, avançando à custa dos países do G7 e da OCDE, sobretudo os EUA. De 1995 a 2020, a China também capturou mais de 80% dos ganhos dos países não pertencentes à OCDE, como Brasil.

É inviável qualquer política industrial que ignore tal equação de desequilíbrio geoeconômico no mundo, implicando o renascimento do protecionismo e do apoio dos governos às suas empresas nacionais.

Ela sugere duas atenções: às indústrias maduras, que são maioria no país, função de crédito e de ênfase ao chamado Custo Brasil; e à promoção de inovações tecnológicas e às empresas emergentes, estas, sim, prioridades de política industrial.

Os economistas Dani Rodrik e Joseph Stiglitz adicionam outro conselho num artigo recente: evitar intervenções de cima para baixo e trazer para perto da formulação as empresas e outras partes interessadas. Como o debate está só começando, ainda há tempo para ajustes de rota. Mas não muito tempo…

Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

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