Como se faz o caminho
Já passa da hora uma conversa séria entre a sociedade e os poderes eleitos e o melhor momento é quando os indicadores vitais da economia estão melhores do que os pessimistas supunham, depois de uma eleição decidida a favor do presidente Lula por uma pequena margem de votos.
Com o desemprego caindo, apesar da profusão de empregos precários, o saldo positivo da balança comercial em nível recorde, embora graças à exportação de grãos, cuja contribuição para a arrecadação de impostos é baixa e emprega pouco, e a taxa de juro do Banco Central cedendo, o governo Lula deveria respirar aliviado. Mas segue pressionado por uma maioria de deputados, uma base de apoio ainda escassa no Senado e com o eleitorado tão polarizado quanto na época da eleição, e isso apesar da decadência política de Bolsonaro, inabilitado pelo TSE.
O governo assumiu com os juros já aumentados a 13,75% pelo BC devido às traquinagens da equipe passada para forçar a reeleição com jogadas populistas. Elas legaram um calote de R$ 150 bilhões dos precatórios e um rombo aos estados e municípios pela baixa forçada do ICMS sobre combustíveis e telefonia, mais outro rombo na lei orçamentária, com o aumento de R$ 400 para R$ 600 do então Auxílio Brasil, seguido do empréstimo consignado sobre tais valores entre o 1º e o 2º turno, implicando uma enorme inadimplência para a Caixa Econômica Federal.
O ano de 2023 tem sido a consequência mais do que o governo passado fez de mau, com aprovação do Congresso, do que o atual já teve tempo e condição de implantar. Aí está a origem da confusão. Em princípio, o governo eleito sempre herda as heranças boas e ruins do anterior, é do jogo democrático. Esquisito é a antiga maioria que deu guarida ao governo passado ditar os termos para continuar como base de apoio.
Lula tem tentado repetir a fórmula de seus dois mandatos anteriores, buscando aliciar com a liberação de emendas ao orçamento votado pelo Congresso e a distribuição parcimoniosa de ministérios e a direção de órgãos públicos aos partidos da antiga situação, vulgo centrão, bloco amorfo, teoricamente de centro e centro-direita e aberto a negócios.
Essa maioria, entre cerca de 180 deputados mais próximos e 190 da velha base representada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, ele já tem. Mas em termos, votação a votação, o que leva a que se avalie se essa metodologia não estaria mais complicando que ajudando.
Sem exercício de prudência
Dois pontos distorcem a cena parlamentar atual vis-à-vis a de 2003 a 2010, quando, apesar da maioria coesa, houve escândalos em série.
O preço para Bolsonaro ter liberdade para fazer o diabo na tentativa de se reeleger foi delegar a execução orçamentária ao centrão, além de permitir a criação do nebuloso “orçamento secreto” – verbas da lei orçamentária (LOA) dadas ao parlamentar para aplicação em sua região eleitoral sem prestar contas nem sequer constar como seu requerente.
O STF vetou tal liberalidade fiscal, que já havia sido acusada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), mas o centrão fincou pé. O governo eleito negociou, então, que metade do tal orçamento secreto seria incorporada às emendas individuais, ou seja, por parlamentar, e às de bancadas por estado, ambas com a liberação obrigatória. A outra metade foi direcionada a projetos de ministérios, com mediação do parlamentar da região contemplada. Só que, para não ter erro, o centrão quer seguir à frente deste naco.
Por cautela, até pelo receio do ocorrido no passado, Lula está mais fechado a tais pedidos. Isso demandaria do governo acionar menos o Congresso, especialmente pela política econômica, e conter os ímpetos dos ministérios petistas para não aparentar favorecimento à revelia dos neoaliados dos partidos de centro e centro-esquerda.
A prudência não foi considerada na proposta do novo regime fiscal aprovado pelo Congresso sem corte de gasto e com aumento de impostos, que exigem sanção parlamentar. E mais: para lhes dar razão, parte do governo passou a hostilizar o setor privado, cuja conexão política passa pelos partidos neoaliados da base governista.
Caminho se faz caminhando
Ao governo há alguns caminhos – e “caminho se faz caminhando”, conforme o grande poeta e dramaturgo espanhol homônimo deste escriba. Por ora, menos discrepante seria o governo alinhar com o Congresso apenas as pautas consensuais, como a reforma tributária, hoje da tributação sobre o consumo, aprovada na Câmara e tramitando no Senado, e a do IR, prometida para a sequência.
A agenda da produtividade, que é também da gestão pública arcaica e disfuncional neste tempo de dominância digital, faz sentido, agrada à maioria dos políticos e o empresariado e terá de acontecer. Se não a implantarmos, não haverá economia nem gestão que parem de pé. É muito mais ampla que a mera reforma administrativa que está na praça. Ela, a rigor, visa cortar salário de bagrinho e poupar a elite da burocracia.
Chamo de reforma da governança do Estado de alto a baixo, da União a estados e municípios, incluindo Judiciário e instâncias legislativas. Talvez seja a proposta mais agregadora, unindo pensadores da economia tão diversos como Armínio Fraga e André Lara Resende. Não dá é para pilotar um orçamento em que 80% da receita é desembolsada com previdência e folha de funcionários e o investimento público esteja limitado a 1% do PIB, como destaca Armínio. Deveria ser de 3% a 5%.
Com saúde pública, gastamos menos de 4% do PIB, quando deveria ser o dobro. Saúde e educação são gastos obrigatórios na LOA, tratados cada qual de forma separada. Mas com cada vez mais idosos que jovens e a população, segundo o presidente do IBGE, Márcio Pochmann, tendendo a diminuir a partir de 2030, ambas as contas deveriam ser consolidadas.
Resultado é o que importa
No fim, o sucesso do governo virá do resultado do bem-estar, função do bom desempenho da economia, hoje, com o déficit fiscal, sem chance de vir de estímulos por transferências de renda em programas como o Bolsa Família nem de facilitação de crédito, sobretudo diante dos níveis elevados de inadimplência. Como faz?
A resposta está nos próprios programas anunciados pelo governo, tipo PAC, de infraestrutura, modernização da Defesa e indústria da saúde. Em todos, a parte atribuída ao capital privado é acima de 70% sobre o que o governo se compromete com aportes da LOA e bancos estatais. É o setor privado, portanto, que pode destravar a encrenca, se tiver boa regulação, baixo risco jurídico e projetos executivos de excelência.
De quebra, diminui a demanda por decisões do Congresso, já inquieto com o governo ir ao STF pedir ajuste no pagamento de precatórios sem passar pela necessária decisão parlamentar. Um bom diálogo abre o caminho. E dispensa caneladas em empresas, bancos, agro, que sabem bem que retórica inflamada gera like em rede social, mas não voto. Nem resultado na última linha dos balanços perscrutados pelo Fisco.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.