3 em 1 do arcabouço
Vamos ser atrevidos e supor que a meta do déficit zero do orçamento federal de 2024 seja alcançada. Isso exige que o Congresso aprove os projetos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar o IR de empresas e fundos e cortar incentivos fiscais com base no ICMS.
São medidas difíceis politicamente. Elas oneram os contribuintes de maior renda, justamente aqueles capazes de acelerar os investimentos como querem o governo e os milhões de brasileiros desesperançados com a estagnação iniciada com a desindustrialização no fim dos anos 1990.
Então, com tantos riscos, tem que valer a pena. Vai valer?
Não se sabe se o programa que substituiu o teto de gasto corrompido na gestão passada para reeleger Bolsonaro terá eficácia. É o tal do “arcabouço fiscal”, definido pela Lei Complementar 200. Nela não há, explicitamente, a meta de déficit zero em 2024. É uma promessa.
A intenção – esta é a palavra apropriada: intenção – é que em quatro anos de governo Lula o saldo primário (receitas menos despesas sem os juros da dívida pública) saia do negativo, algo como 1,1% do PIB este ano, para o positivo. Para 2024, o intervalo de variação é de -0,25% do PIB a +0,25%. Zero é a meta de Haddad, subindo para +0,5% em 2025 e +1% em 2026. Numa conta de padeiro, o quadriênio fiscal do terceiro governo Lula teria um saldo positivo de 0,4 ponto de percentagem.
Mas o mercado financeiro está cético. No último boletim Focus do BC, o saldo primário sairia de -1,1% do PIB este ano para -0,83% em 2024, -0,6% em 2025 e -0,4% em 2026, consolidando um déficit de 2,93 pontos percentuais nos quatro anos da administração federal.
Para o orçamento zerar em 2024, o governo precisa encontrar R$ 168,5 bilhões, cerca de 1,5% do PIB. Parte poderia vir melhorando os gastos das rubricas da LOA, só que não, elas vão crescer. Resta onerar o IR, já que os demais grandes impostos federais (IPI, PIS/Cofins) compõem o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), assim como o ICMS e ISS, na reforma aprovada na Câmara e agora tramitando no Senado.
Mexer com o IR antes da reforma da renda prevista para depois do IBS surgir não faz sentido. Mas assim está dado. E o que vai acontecer?
Nada. O investimento mínimo para sairmos da mesmice é privado, dada a penúria das contas fiscais. Ele existe, mas não aceita desaforo.
Analisem JK e Lula 1 e 2
Projetos nacionais com grandes objetivos, num mundo em que tudo está conectado 24 horas todos os dias e setores econômicos inteiros estão ameaçados por novas tecnologias e modelos de negócios, são por demais complexos e sofisticados para serem concebidos por grupos fechados.
Já era assim na época do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1960, quando boa parte da formulação dos investimentos veio de grupos executivos, integrando governo, academia, empresas e bancos.
Foi assim nos dois primeiros governos Lula, com os principais planos e programas formulados fora da estrutura rígida dos ministérios, mas com forte conexão com os objetivos do presidente e sua base política.
Não se afasta também a cabeça macroeconômica do corpo dos projetos, entre obras de infraestrutura e modernização setorial do agronegócio, mineração, indústria e serviços. Os programas sociais são a forma de a realização empresarial promover a renda pela geração de empregos e amparar os segmentos da população deixados historicamente à margem.
O fato é que não se confirmou em nenhum lugar do mundo a ilusão de que, se o Estado for mínimo e os indicadores chaves da estabilidade econômica estiverem sob controle, o crescimento movido pela expansão do capital produtivo seria a consequência feliz. Nem nos EUA, onde a ideologia fincou raízes e desde Trump vem sendo erradicada pelo medo de que a maior economia do mundo vire filial do capitalismo chinês.
É assim que estamos: entretidos por normas contábeis do Estado como se a solvência pública estivesse ameaçada e o milagre do crescimento viesse do equacionamento dos fluxos de receita e despesa. Ora…
Capital privado não falta
Desenvolvimento se faz com visão do que desenvolver e reforçar o que já está desenvolvido. Dinheiro para tanto daqui e de fora não falta.
No primeiro caso, candidatos visíveis são as novas energias (eólica, solar, hidrogênio), veículos a bateria, adequação urbana a sistemas inteligentes, a indústria da saúde e tudo o que vem da tecnologia de informação e inteligência artificial. No segundo, já passa da hora a verticalização das cadeias de valor do agro, inclusive com marca e certificação ambiental, e a exploração de minerais estratégicos para as energias limpas como oportunidade para a reindustrialização.
Há também um sem-número de empresas com boa posição de mercado, mas carentes de tecnologia para renovar o que faz, com gestão obsoleta, passivos fiscais e, não raro, com problemas de sucessão do fundador.
O governo, e cada vez mais o Congresso, pode muito na economia, mas, em geral, ajuda a impulsionar o crescimento quando tem as suas contas razoavelmente em ordem e compreende o que atrai o capital. Hoje, por exemplo, os fundos que aplicam em empresas procuram oportunidades no mundo, dando atenção aos mercados emergentes como Indonésia, Índia e, nas economias desenvolvidas, EUA, Japão, Cingapura, tratada como hub de capitais privados chineses para diversificação de riscos.
Ao Brasil, considerando reformas como a tributária e possivelmente a administrativa, além de novos marcos regulatórios em saneamento, gás e portos, entre outros, falta interlocução livre com as instâncias de decisão de investimentos privados. O resultado pode surpreender, já que pedidos ditos “especiais” não são a prioridade da vez.
Brasil como bola da vez
É possível que esforços fiscais com vistas a retorno político rápido no cenário polarizado que a decadência de Bolsonaro não fez arrefecer possam ter implicações mais negativas que o resultado esperado. Ainda mais quando sugerem atomização da autoridade governamental.
É o que se vê com a falta do governo na disputa entre emissores de cartões e as empresas de maquininhas. Os bancos ficam com o risco do crédito, enquanto o modelo de negócios das chamadas credenciadoras se baseia na antecipação a lojistas de seus recebíveis. O negócio cresce quanto maior o prazo de venda e, assim, o risco de inadimplência. Sem solução, o Congresso interveio e aprovou lei dando 90 dias para que o acordo se faça ou a cobrança não poderá exceder 100% do valor devido.
Também surpreendeu o corte do juro máximo do consignado, reduzido a 1,91% ao mês em agosto, para 1,84% sem que CMN, BC e Fazenda fossem ouvidos. E a portaria do Ministério das Cidades zerando as prestações do Minha Casa, Minha Vida a assistidos pelo BPC e Bolsa Família.
Fica a impressão de que o déficit zero em 2024 é álibi para aumentar a arrecadação e vitaminar programas sensíveis ao eleitor visando as eleições municipais de 2024. Mas, se o Brasil é bola da vez no mundo e a economia em boa estado promove a avaliação do governante, deixar o capital privado fluir tende a ser mais eficiente que qualquer arranjo fiscal.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.