Perigos e oportunidades
Apesar do tenso ruído de guerra, o país está diante de oportunidades singulares no mundo conflagrado. Afinal, não foi trivial no mesmo dia em que Joe Biden e Benjamin Netanyahu se reuniram em Telavive, após o ignominioso ataque dos terroristas do Hamas a Israel, as principais expressões do chamado Sul Global contrárias à Pax Americana, Vladimir Putin e Xi Jinping, trocarem afagos e declarações de apoio em Pequim.
Hoje, damo-nos bem com estes senhores da guerra. E isso tem valor para além da retórica da diplomacia e das moções nas Nações Unidas.
É a hegemonia dos EUA que foi contestada quando a Rússia invadiu a Ucrânia e a China promoveu a aproximação entre os dois maiores rivais do Islã, a Arábia Saudita da vertente sunita do islamismo e, em tese, aliada dos EUA e o Irã xiita, hostil aos americanos e a Israel.
Inimigos declarados, como o Irã, uma teocracia severa, em boa parte pelo apoio irrestrito de Washington a Israel, ou dissimulados, como a Rússia de Putin, cismado com a desestabilização que destruiu a União Soviética, e a China de Xi Jinping em ascensão a superpotência, são sequelas da disfuncionalidade da democracia dos EUA, vitimada pela ideologia do fundamentalismo de mercado. Essa é a tendência de fundo.
O que chamam de “neoliberalismo” arruinou, a partir dos anos 1970, o pacto social vigente nos EUA desde a 2ª Guerra, implicando o fim da mobilidade social, que parecia irrefreável, e fez emergir a carga de ressentimento, especialmente da classe média branca pouco instruída, numa sociedade com entranhas racistas e impelida à desigualdade.
A eleição de Donald Trump em 2016, a invasão do Capitolio pelos seus apoiadores, instigados por ele ao não reconhecer a derrota para Biden em 2020, o colapso do sistema bipartidário, expõem o fim de uma era.
Ela já foi repudiada pelos eleitores de Trump e de Biden, que devem reencontrar-se nas urnas em novembro de 2024, sem que outro pacto tenha nascido, gerando crises patéticas como a vacância do comando da Câmara, apesar de o Partido Republicano ter a maioria dos deputados.
Todos estes desenvolvimentos indicam que o mundo pode ter caído num novo período de desordem, segundo David Leonhardt, do New York Times – um evento global, que abala até a China. É um perigo que a eleição de Lula bloqueou, mas ainda falta fazer muito mais para erradicá-lo.
Porto seguro global
Críticos da equidistância de EUA e Europa, de um lado, e de China e Rússia, de outro, com viés pró o dito Sul Global, marcas da atuação internacional de Lula, afirmam que o presidente quer mudar o mundo.
É o que as suas não poucas derrapadas ao falar de improviso sugerem, mas talvez não por ele, mas pelo antiamericanismo antiquado de sua assessoria de relações externas. O Lula de dois mandatos exitosos tem consciência de que a retaguarda produtiva de um país é o que projeta a expressão de poder das nações. Essa é a mudança que não aconteceu.
E não acontecerá se seu governo, associado ao Congresso, não souber equilibrar as propostas para elevar a produtividade da economia, caso da reforma dos impostos indiretos, seguida depois de sua aprovação da sobre a renda, com a mitigação da ortodoxia fiscal e monetária.
Ainda agora passa batido o fato de que os movimentos de fuga para a segurança que cada vez mais influenciam os capitais no mundo não têm só o dólar, portanto, os EUA, como porto seguro. Isto é relevante.
Graças às reservas acumuladas desde o primeiro governo de Lula e às excepcionais exportações de bens agrícolas, minérios e petróleo, “o Brasil está se tornando um porto seguro global”, de acordo com Robin Brooks, economista-chefe do IIF, think tank dos bancos globais e ex-chefe da área de moedas do Goldman Sachs.
“A fuga para a segurança está impulsionando real”, diz ele, “e essa é uma nova dinâmica que também vimos em 2022, depois da Rússia ter invadido a Ucrânia”.
Um financista otimista
Brooks sustenta desde 2019, quando o real começou a se depreciar por causa da tese tola de que ajudaria a reindustrialização, que o câmbio justo seria da ordem de R$ 4,50 por dólar. Uma ligeira apreciação do real ajudará a distensionar a inflação sem tirar competitividade das commodities, todas, sem exceção, campeãs em produtividade.
Este é um indicador poderoso para levar o Banco Central a ignorar os alertas mal-informados de economistas do mercado financeiro de que se o Federal Reserve seguir elevando a taxa básica nos EUA, agora em 5%, ou mantê-la por tempo acima do razoável, a Selic atualmente em 12,75% deveria estacionar ao redor de 10% a 11%.
Isso é bulshitt nos termos do que diz Robin Brooks, e razão da pechincha dos ativos nacionais.
O ministro Fernando Haddad deve intuir, dos encontros com dirigentes de fundos de ativos, que, mesmo sem mudanças substantivas nos números fiscais e monetários, o país está na iminência de enfrentar um salto quantitativo de investimentos de médio e longo prazo. Bastam sinais de que a Selic tende a 8,5% a 9%, o déficit do orçamento federal não tenha viés crescente nos próximos anos e a prioridade será no sentido de faciliar a produtividade empresarial e o avanço tecnológico.
Mas e a inflação? Está confortável e vai seguir frustrando a turma do chilique, como em setembro, quando ficou abaixo do previsto.
Os inimigos do Brasil
Vale para o Brasil o que o economista Paul Krugman escreveu em sua coluna regular no The New York Times: “Sim, a Pax Americana está em declínio”. Mas “os inimigos estrangeiros da democracia” não são o problema, “é o inimigo interno”. Por analogia, inimigo do Brasil é a falta de crescimento econômico decente, com mobilidade social.
Inimigo do progresso com bem-estar, por exemplo, é a indústria de transformação responder por 12,9% do PIB e por 30,4% da arrecadação de impostos, sendo ela a atividade que dinamiza os serviços, maiores empregadores do país. Ou a banca, vilã das narrativas, ter um peso de 9% do PIB e 21% na receita total de impostos. Se a carga for mais bem distribuída, isentando investimentos produtivos e pondo teto para a alíquota de referência, como diz que fará o relator da reforma do IBS no Senado, senador Eduardo Braga, já será um grande avanço.
Mas precisa mais, muito mais, para a economia ser a retaguarda forte que o presidente busca para reprojetar o Brasil no mundo. Se voltar a dar ouvidos aos que acreditam no nosso potencial, o presidente poderá se sair muito bem aqui e nos fóruns globais. Mas esse movimento é tão forte que tende a vir mesmo sem apoio oficial. Só será mais lento.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.