É cada um na sua
Depois de hesitar por quase três meses, culpar as frequentes viagens ao exterior para adiar a decisão e conversar até ficar rouco com os petistas que lhe são próximos e os caciques dos partidos do centrão, o presidente Lula, enfim, abriu vaga no ministério de 37 pastas para dois deputados do bloco de centro-direita, que são maioria na Câmara. E ainda achou necessário criar uma 38ª pasta para agradar um aliado.
Estranho é que tamanha apreensão não se deveu à importância relativa dos ministérios envolvidos no rearranjo de forças políticas. Portos e Aeroportos passou para o deputado Sílvio Costa Filho, PR-PE, partido do atual vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira, bispo licenciado da Igreja Universal. E Esportes foi para André Fufuca (PP-MA), muito próximo de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e do senador Ciro Nogueira (PP-PI), chefe do partido e ex-Casa Civil de Bolsonaro.
Ana Moser perdeu Esportes, mas poderá ser realocada. Fufuca terá seu ministério reforçado pela secretaria que vai controlar as casas de apostas esportivas e jogos eletrônicos, cujo destino seria a Fazenda.
Márcio França foi tratado com mais deferência por perder a pasta dos Portos e Aeroportos. Chefe em São Paulo do PSB, velho aliado do PT, e responsável por atrair Geraldo Alckmin para a chapa com Lula, criou-se a pasta do Empreendedorismo, Cooperativismo e Economia Criativa só para acomodá-lo, mas pode chamar de Ministério das Micro e Pequenas Empresas. Mudou-se o nome porque França cismou com a palavra “micro”.
A dança de cadeiras não configura uma reforma ministerial típica de início de governo, quando ministros mal avaliados são substituídos. É algo que deverá ser feito depois de fevereiro. A mexida foi exigência do bloco de centro-direita, liderado por Lira na Câmara, para aprovar projetos consensuais, sobretudo reformas econômicas, e ponto.
Agenda de costumes e ações sem respaldo empresarial que representam ou não passam ou o governo terá de limar com lixa grossa, como as que visam aumentar impostos. É lé com lé e cré com cré, não aliança real.
Muita discussão e pouca conclusão expõem a ascensão do parlamento às custas do presidencialismo, fragilizado por décadas de estímulos à demanda e baixa atenção à oferta como sequela dos programas de ajuste fiscal à revelia da dinâmica empresarial e da mobilidade social.
Parlamento fortalecido
Algumas conclusões saltam à vista. O presidente pode muito, mas não dita a agenda parlamentar desde que o Congresso tornou obrigatória a liberação das emendas à lei orçamentária, na gestão Temer, assumiu a execução do orçamento com Bolsonaro e, com o governo minoritário na Câmara, não se comove com apelos de que não pode opor-se ao “programa vitorioso nas urnas”, como disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann.
O problema que ela não desconhece é que o mesmo eleitorado que deu a Lula um terceiro mandato elegeu uma maioria conservadora na Câmara de partidos que trabalharam pela reeleição de Bolsonaro e o impeachment de Dilma Rousseff. Mas assim é a política. Todos deram aos dois os votos aos projetos que encaminharam e não se acanharam em se livrar de um de seus caciques, Eduardo Cunha, depois que o STF, no auge da Lava Jato, o impediu de exercer a presidência da Câmara.
Já eleito, Lula ouviu ao menos uma vez que, sem maioria parlamentar, precisaria priorizar um programa focado em investimentos em inovações tecnológicas e numa macroeconomia menos subordinada ao Banco Central independente, o que exigiria operar as políticas fiscal e monetária como uma coisa só e não fracionada. Isso implicaria adicionar o lado fiscal ao Conselho Monetária Nacional, onde tem assento o presidente do BC mas subordinado a suas diretrizes. Quando o Congresso renovado pelo voto reabrisse em fevereiro, o rumo da economia já estaria dado.
Lula não quis inovar
Lula optou pelo que conhecia: a barganha com deputados e senadores, o restabelecimento das fortes políticas sociais que consagraram seus governos de 2003 a 2010 e conciliação com o mercado financeiro. Vem daí o regime fiscal mais maleável que a rigidez do teto de gasto, de resto já subvertido pelo desespero de Bolsonaro em se reeleger, mas com o compromisso de zerar o déficit sem juros do orçamento em 2024.
Foi o que empoderou a maioria conservadora no Congresso, já que tais diretrizes exigem aprovação parlamentar. A saída para Lula é a mesma em todos os países em que o poder emana do voto: ele terá de angariar amplo apoio na sociedade para influenciar o parlamento. Isso depende, para resumir, de crescimento econômico com bem-estar social.
Com eleição municipal em outubro de 2024, cortar gasto, por isso, é o que menos os próceres do PT querem ouvir. Contam com transferências de renda aos pobres, retomada de obras de infraestrutura do novo PAC, desendividamento dos milhões de negativados, inflação baixa, juros em queda e mais empregos para se recuperar do desempenho ruim em 2020.
Cabe ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a missão de conciliar a expectativa de Lula e dos aliados com as metas autoimpostas do fim do déficit primário das contas fiscais em 2024 e superávit de 0,5% do PIB em 2025. Sem poder conter o gasto na lei orçamentária, ele apelou ao que seria tratado na revisão do IR e da CSLL, prevista para depois de o Congresso aprovar e sancionar a reforma dos impostos indiretos.
E voltamos, assim, aos dois princípios que se autoalimentam: de um lado, a armadilha da prioridade da demanda em contraponto à oferta, o que, à falta de estímulos corretos, levou à decadência da indústria de transformação; de outro, a disfuncionalidade política, cada vez mais acionada para defender o agronegócio, setor mais bem posicionado na economia, e canibalizar os recursos fiscais em seu auto interesse.
Improviso que só distorce
A meta de arrecadação com novas onerações (sobre fundos exclusivos, sobre offshores de brasileiros, com o julgamento enviesado a favor do Fisco nos processos no Carf, órgão da Receita que examina autuações tributárias, com o fim do JCP, juros sobre capital próprio, regra que equipara empréstimos tomados pelas empresas aos aportes dos sócios) é salgada: R$ 168 bilhões, projeção do que falta para zerar a LOA de 2024. Tais medidas vieram por medida provisória e projeto de lei.
Cada uma delas tem sua justificativa de mérito. Mas, sem conectar-se com a reforma geral da renda, vão complicar um sistema impositivo que é o maior responsável pela falta de competitividade das operações das empresas nacionais e estrangeiras no país. E fica pior quanto mais os apoiadores do governo hostilizam bancos e grandes empresas para criar um ambiente político favorável à aprovação no Congresso de algo que é anátema aos partidos de centro-direita: aumento de carga tributária.
A suposição é que em troca de dois ministérios menores com liberdade para gastar, mais a liberação de emendas à LOA, eles venham a dar as costas a quem os elegeu. Ironia é que nem a Lula isso lhe convém, já que nada é mais progressista que um programa focado na produtividade. Também é estranho hostilizar a banca, que vai levar um tombo se não tiver uma transição para o fim do JCP, quando crédito fácil é o que mais a economia precisa.
Lula poderia ouvir seu colega Narendra Modi, da Índia, onde se encontra para a cúpula do G-20, sobre as razões do sucesso indiano. Sua economia é mais dinâmica que a da China e tende a ser a terceira do mundo até o fim da década. É suficiente saber que tudo começou com a digitalização em massa da população e o entusiasmo maciço do empresariado local e de fora. Mas isso Lula já sabia.
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.