GPS avariado
Daqui até fim do ano, o noticiário nacional sobre a economia e, por consequência, a política estará tomado pela discussão sobre a LOA, a lei orçamentária anual para 2024, proposta ao Congresso pelo governo.
Há muitas dúvidas sobre as projeções de receitas e despesas federais e uma certeza: vai-se despender tempo demais com o que não configura uma política econômica. Plano de contas não define o desenvolvimento, no máximo, facilita a sua implantação com menos riscos e desvios.
A macroeconomia brasileira segue o que se fez nos EUA desde os anos 1990 até que com Trump e Biden o viés da ortodoxia de mercado e a sua sequela da hiperfinanceirização começou a mudar. No Brasil, o que se fez de diferente foi a atenção às políticas sociais, logo, ao consumo graças às contas externas garantidas pela exportação de grãos, carne, minérios e petróleo, e nada de manufatura. Desenvolvimento só existiu no nível da retórica, já que a ortodoxia fiscalista e o populismo que o confronta são faces opostas da mesma moeda que produz estagnação.
É provável que sem a ameaça do expansionismo econômico chinês, numa versão do keynesianismo que alçou os EUA ao status de maior potência econômica e militar global, nada tivesse mudado. Mas mudou, e é o que merece atenção, sobretudo o apoio bipartidário nos EUA ao Estado como indutor das áreas prioritárias para subvenções, além de compromissos com o emprego, o meio ambiente e a inovação de fronteira.
Outra sutileza que não se deve ignorar é que a concepção do que leva a alcunha de Bidenomics (pois Trump não entregou o prometido) veio de executivos de casas de investimento de Wall Street, como a BlackRock. Eles formularam os programas de energia limpa, de carros elétricos e semicondutores, de infraestrutura, afastando do Partido Democrata os economistas neoliberais influentes desde os governos Clinton e Obama.
Um programa guiado pelo crescimento escolhe o que se faz necessário – ampliar a demanda ou a oferta ou ambas com ênfases variadas. Depois estuda-se como bancar o crescimento e as modalidades de capital para a fatia que exceda os fundos próprios dos acionistas, sejam privados ou estatais, além de sua origem, se com emissão de ações ou papéis de dívida, incluindo prazos e condições financeiras. É by the book.
Mãos visível e invisível
É assim que a indústria de última geração ressurge nos EUA e Europa, com financiamento de longo prazo e subvenções para a reconversão de fábricas e a inovação tecnológica. Não há o conflito Estado versus mercado nem estatização, só medo de a China engolir o emprego local.
E nós fazemos o quê? O governo quer cobrar mais imposto de empresas, cuja carga tributária, em média, é maior que dos países concorrentes, e políticos querem incentivar insumos do passado, como gás e etanol.
O fato: o GPS do nosso caminho do desenvolvimento está avariado.
Desenvolvimento é complexo e se entende a razão da política relutar. Atente: se estiver tudo bem azeitado, com a parte privada ciente do que fazer, as condições subjacentes da economia, normas regulatórias e custo do capital definem a vontade de tomar risco e o investimento.
Mas, após décadas de regressão do dinamismo empresarial tal como nos EUA antes de Biden, a “mão visível” do Estado, orientada pela visão harmônica entre o interesse nacional e o setor privado, transcende a “mão invisível” do mercado e é acionada para mudar o rumo. Não o faz contra, mas a favor do mercado incapaz de romper a inércia.
Na infraestrutura, lembra o PAC, apesar de ainda depender muito de decisões centralizadas na burocracia estatal e ser pouco inovador. O resto aponta para esforços dispersos entre várias instâncias e pouca visão transformadora – tanto da renovação da gestão do setor público quando da revitalização da manufatura. O que temos perdeu validade.
Dinheiro, China e ambição
Dinheiro é como rio: venha de onde vier, trafegue por onde for, vai sempre desaguar no mar. Ou, no caso da analogia, onde renda mais com segurança e custo baixo. Mas às vezes empoça ou tem o ciclo barrado, levando a rompimentos que provocam tragédias, e não só as naturais.
Aplicada ao dinheiro, é o que levou à desindustrialização em várias partes do mundo, provocando o que os politicólogos encontraram depois de Trump, Brexit, Bolsonaro e até Putin: o amargor da perda de renda, crescente na fase anterior à emergência da China e outros na Ásia, e isso devido à transferência de fábricas do mundo rico para países de mão de obra barata, impostos baixos e descaso ambiental e social.
Os emergentes da geração anterior, com indústria diversificada e uma classe média em ascensão, como Brasil, não reagiram a tal viés, pois presos na armadilha dos déficits fiscais e inflação crônica, e foram se esvaziando. Argentina, Venezuela, Rússia afundaram, e nós evitamos a metástase cambial graças à produtividade do agro e dos minérios e à demanda da China, que já na década de 2000 despontava sem rival.
Mas não para suprir seu mercado de 1,4 bilhão de pessoas, mas do G7, o grupo dos países ricos, sobretudo EUA. E a fez com a estratégia de produzir com capacidade muito acima da procura mundial, começando por aço, cimento, artigos têxteis, depois partes de eletrônica, chips, e chegou ao que se tornou: fábrica do mundo, e cada vez mais do que é de última geração em telecomunicações, celulares, carros etc.
Combustível do futuro… Hem?
Não entender o papel da China no contexto do desenvolvimento local, nove vezes fora a disputa geopolítica com EUA, é um grave equívoco. Como enumera o economista Noah Smith, “China é um concorrente direto e não uma engrenagem na cadeia de abastecimento, já não é o motor de crescimento de antes, está se tornando uma sociedade mais fechada e os países ricos compreendem [hoje] os riscos dessas relações”.
Se até há pouco a China produzia por encomenda o que Apple e outros requeriam para exportar a seu mercado de origem e ao resto do mundo, com Xi Jinping a ambição mudou para ditar o padrão – de tecnologia de celular a carro elétrico, semicondutores, fármacos, e vai por aí.
O motor a combustão se tornou obsoleto, substituído por baterias de lítio que armazenam a carga elétrica que impulsiona o veículo. Só de fabricantes de baterias há 50 empresas chinesas. Seis estão entre as dez maiores no mundo e controlam 63% do mercado. E esse é só um dos muitos exemplos para ilustrar o tamanho do desafio. E nós com isso?
Na quinta-feira, o governo relançou o etanol turbinado com o nome de “combustível do futuro” em cerimônia no Palácio do Planalto, com Lula levado por ministros a dizer que assim o país se tornará uma “nação grande, rica e soberana”. Só que centros de estudos dos EUA e China informam que já em 2024 (na Europa), 2025 (na China) e 2027 (Índia) o preço de venda de carro sedan médio a bateria elétrica será menor que a gasolina ou diesel, e com custo de manutenção muito mais baixo.
Pesquisa do Rock Mountain Institute (RMI) prevê que o carro elétrico terá 86% do mercado de veículos novos até 2030, mais que o dobro de projeção de abril da Agência Internacional de Energia (AIE). Isso vai tirar mais de 1 milhão/dia de barris de petróleo no mundo.
Estamos no caminho certo ou na contramão do mundo? As discussões que tomam nossa atenção, tipo arcabouço fiscal e atas do Copom, não têm a resposta. Curiosamente, o empresariado, a quem interessa a discussão e é o ator dinâmico da transformação no mundo, está mudo. Por quê?
Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.